Por Marianela Jarroud*
Santiago, Chile, 25 de maio de 2015 (Terramérica).- Os direitos de água no Chile, privatizados durante a ditadura militar de 1981, mantém em xeque a agricultura familiar e camponesa, que luta pela reconversão, ao menos parcial, desse recurso ao controle público.
“Por que devemos pagar direitos de água se a gente que nasceu e se criou no campo sempre teve acesso a esse recurso?”, questionou ao Terramérica a líder das mulheres camponesas da Patagônia, Patricia Mancilla, em uma dúvida que se repete por todo o país entre os pequenos produtores.
O Chile, um país estreito e comprido, tem abundantes recursos hídricos, mas desigualmente repartidos: enquanto ao sul de Santiago a disponibilidade média anual é superior a dez mil metros cúbicos por pessoa, ao norte não chega aos 800 metros cúbicos por habitante, segundo estudo realizado em 2011 pelo Banco Mundial.
Com maior ou menor disponibilidade, a Constituição de 1980 consagra a água como um bem privado. O uso dos recursos hídricos, segundo regras do mercado, são reguladas por um Código de Águas que dá ao Estado a faculdade de conceder a empresas direitos de aproveitamento, de forma gratuita e perpétua. Também faculta comprar, vender ou arrendar esses direitos sem considerar prioridades de uso.
“O Chile é o único país do mundo que tem privatizadas as fontes e a gestão das águas”, destacou ao Terramérica o ativista Rodrigo Mundaca, secretário-geral do Movimento pela Defesa da Água, da Terra e pela Proteção do Meio Ambiente. Este engenheiro agrônomo acrescentou que a lei chilena “separa a propriedade da água do domínio da terra, dando origem ao mercado das águas”, o que provoca a existência de proprietários de terra sem água e vice-versa.
A ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) estabeleceu duas categorias de aproveitamento de águas: consumíveis e não consumíveis. Entre os direitos consumíveis, aqueles que o recurso é consumido ao ser usado, 73% estão em mãos do setor agropecuário, 9% no de mineração, 12% no setor industrial e 6% no sanitário, detalhou Mundaca.
Os não consumíveis, aqueles que a água não é consumida, mas que transita, estão destinados principalmente à geração de eletricidade e 81% desses direitos se encontram, desde 2009, nas mãos da empresa ítalo-espanhola Enel-Endesa, acrescentou o ativista.
Como consequência, “hoje as comunidades do norte do Chile enfrentam, pela água, a megamineração, as comunidades do centro, a agroindústria e a agroexportação, e as do sul, as hidrelétricas e as florestais”, afirmou Mundaca. “Atualmente, a água é, sem dúvida, o problema ambiental mais importante do país. Pequenos agricultores perderam suas terras e há municípios como Petorca, onde vivem mais de três mil mulheres sozinhas, porque seus companheiros partiram em busca de trabalho”, pontuou.
Em geral, a América Latina é uma das regiões do mundo mais vulneráveis diante das crises causadas pela mudança climática, segundo o Banco Mundial. Mas no Chile a maior vulnerabilidade para os pequenos agricultores não é a climática, mas sim o “roubo de água” por parte dos grandes agroexportadores.
Petorca, um caso paradigmático
“O negócio da água evidencia o conflito de interesses, o tráfico de influências e a corrupção que há no Chile”, afirmou ao Terramérica o pequeno agricultor Ricardo Sanhueza, morador em Petorca, 220 quilômetros ao norte de Santiago, cuja situação representa o paradigma do impacto do modelo da água dos últimos 35 anos. “Lembro que, entre 1987 e 1997, vivemos uma forte seca, mas jamais faltou água potável”, acrescentou.
Petorca fica na província de mesmo nome e seus pouco mais de 70 mil habitantes devem se abastecer de água por meio de caminhões-pipa. “O problema aqui não é climático, mas sim de superexploração de terras e abuso das águas. Os interesses políticos estão minando as bases da agricultura familiar camponesa”, ressaltou Sanhueza.
A província de Petorca, com 4.589 quilômetros quadrados, está limitada de leste a oeste pela Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico. Segundo um estudo do Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH, estatal), as causas da escassez hídrica que sofre esta província “não estariam associadas apenas ao fenômeno da seca”, mas também “às atividades empresariais que ocorrem na área”.
O informe também afirma que “a concessão de direitos de água sobre bacias extintas são representadas como fatores que contribuem para gerar uma situação de crise hídrica, que afeta seriamente a qualidade de vida dos habitantes da província de Petorca. A priorização da função produtiva da água, acima de sua função de consumo humano, contribuiu para agravar o problema”.
Mónica Flores, psicóloga do municipal Departamento de Saúde Pública, contou ao Terramérica como o rio Petorca secou completamente, o que acabou com a ativa vida social de seus habitantes em torno dele. “O rio nascia na cordilheira e desembocava no mar, mas hoje vemos apenas uma linha cinza, cheia de terra e pedras”, lamentou.
“Existe um antes e um depois. Minha infância foi em torno do rio, onde brincava com meus amigos, nos banhávamos. Porém, a vida da minha filha não é a mesma, é muito mais solitária”, afirmou Flores. “Muitos rituais eram feitos junto ao rio, que era o coração, a coluna vertebral da província”, acrescentou com relação ao impacto para a população do desaparecimento do rio.
Mas Petorca é apenas um exemplo da realidade vivida no Chile. No dia 22 de março, por ocasião do Dia Mundial da Água, o INDH alertou que “o desenvolvimento do país não deve acontecer à custa do sacrifício da água das comunidades, nem ao custo de hipotecar o futuro das próximas gerações.
Atualmente, a Comissão de Recursos Hídricos da Câmara de Deputados debate a reforma do Código de Águas e há avanços substanciais, como o estabelecimento de prioridades de uso da água para necessidades essenciais e a modificação do direito de propriedade perpétuo por uma concessão de uso por gozo temporal. Mas as melhorias da reforma, uma vez que entrem em vigor, só serão aplicáveis no futuro e a maioria dos direitos de água já está concedida.
Além disso, até agora não se toca no privilégio das águas do setor minerador, que concede o direito de aproveitar as águas encontradas nos trabalhos de mineração. Tampouco se fala da insuficiência de reservas para usos essenciais de camponeses e indígenas ou de mudanças constitucionais para recuperar o status de bem público das águas.
A Constituição forjada pela ditadura “diz que todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direito. Mas a privação de água mantém vastos setores da população obtendo-a de caminhão-pipa, banhando-se precariamente e fazendo suas necessidades em sacos plásticos. É vergonhoso e impróprio. A água deve ser recuperada de uma forma ou de outra”, enfatizou Mundaca. Envolverde/Terramérica
* A autora é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.