Buenos Aires, Argentina, 17 de novembro de 2014 (Terramérica).- O fenômeno meteorológico da sudestada deixou sob as águas, na primeira semana de novembro, 19 municípios da planície de Buenos Aires, na Argentina, em inundações com efeitos dramáticos devido ao avanço imobiliário desenfreado. Nos anos 1990, começou um auge residencial que privatiza bairros sobre ecossistemas vitais e constrói muros socioeconômicos na Região Metropolitana de Buenos Aires, e agora também ambientais.
A sudestada é um fenômeno próprio do rio da Prata, de rápida rotação de fortes ventos seguida por redemoinhos de ar e chuvas. Desta vez os ventos superaram os 70 quilômetros por hora e houve mais precipitações em dois dias do que as previstas para dois meses, o que fez transbordar rios, alagou amplas áreas e obrigou mais de cinco mil pessoas a se deslocarem. Jorge Capitanich, chefe de Gabinete do governo de Cristina Fernández, atribuiu as inundações a “uma combinação de sudestada, chuvas copiosas e saturação de bacias hídricas”.
Entretanto, Patricia Pintos, do Centro de Pesquisas Geográficas da Universidade de La Plata, apontou que essa confluência de fatores se agravou pela “difusão de um fenômeno urbanizador”, com a proliferação de bairros “náuticos” ou “urbanizações fechadas aquáticas”. Essa oferta imobiliária de cidades amuralhadas “busca gerar paisagens próximas ou ligadas a corpos de água artificiais ou naturais”, explicou ao Terramérica a geógrafa, coautora do livro A Privatopia Sacrílega. Efeitos do Urbanismo Privado na Baixa do Rio Luján.
Muitos desses bairros privados de luxo ocuparam planícies de inundação de rios e vastas superfícies de mangues, considerados vitais no curso hídrico natural, para o escorrimento da água quando esta sobe. “O que ocorreu com esse fenômeno urbanizador é que avançaram sobre o lugar que funcionava como amortecedor das cheias”, detalhou Pintos.
Os mangues “foram cobertos com urbanizações que, paradoxalmente, promovem um estilo de vida associado ao desfrute da água e da natureza”, apontou ao Terramérica a urbanista Laila Robledo, da Universidade Nacional de General Sarmiento.
Na bacia baixa do rio Luján, esses bairros para setores ricos da população cresceram em quatro dos municípios mais afetados: Pilar, Campana, Escobar e Tigre, que ocupam mais de sete mil hectares. “A sucessão de 65 urbanizações como essas modificou a topografia do relevo na área de desembocadura do rio e freou a drenagem em eventos como os vividos este mês”, afirmou Pintos.
Esses bairros, que a especialista chama de “urbanizações fechadas ‘polderizadas’” (com terraplenagens perimetrais), “implicam uma profunda alteração das características morfológicas naturais, não só para alcançar o nível de piso habitável nas partes de uso residencial (recheio), como para gerar novos corpos de água” (dragagem e desvio).
Isso implica, por exemplo, escavar para criar lagos artificiais e utilizar essa terra para preencher áreas baixas. Além disso, como esses bairros estão em áreas alagáveis, são construídas terraplenagens perimetrais de seis a dez metros de altura para protegê-los da entrada da água externa. “Servem de proteção, mas também funcionam como diques e geram situações de alagamento em bairros vizinhos. O que os protege prejudica os que estão fora”, ressaltou a geógrafa.
Em Tigre, 10% de seus 350 mil habitantes vivem em bairros desse tipo, que ocupam metade do território, informou ao Terramérica o secretário-geral do município, Martín Gianella. “É o que chamamos um modelo de segregação socioterritorial. São divididos com muros territórios e sociedade”, acrescentou, lembrando que Tigre, no norte da Grande Buenos Aires, é historicamente inundado por sudestadas.
“A novidade que vivemos nos últimos cinco anos são inundações por chuvas, já que não é comum que ocorram principalmente em bairros vizinhos a bairros fechados desenvolvidos na última década”, pontuou Gianella. O funcionário pede que o município controle e regule essas construções e “exija um imposto especial sobre esses megaprojetos para poder investir nas obras hidráulicas necessárias.
Robledo destacou que as mudanças dos regimes hidráulicos afetam não só as áreas vizinhas a bairros fechados, porque essa é uma planície cortada por bacias hidrográficas. “A cidade é parte de um metabolismo urbano, o que ocorre em um lugar afeta os demais”, explicou, ressaltando que por isso as soluções devem ser “interjurisdicionais”.
Segundo a urbanista, a construção desses bairros fechados “favorece a privatização da cidade e a especulação imobiliária, em detrimento do resto da população”. Com base em uma “lógica de rentabilidade” sobre o valor do solo, “as empresas compram áreas inundáveis e historicamente baratas, as preenchem para torná-las habitáveis e geram lucros extraordinários”, afirmou. “É resultado do crescimento de um modelo de desenvolvimento de cidade adotado por municípios muito propensos a favorecer o desembarque de grandes correntes de investimento”, acrescentou Pintos.
Ambas concordam que as normas e os mapas de risco socioambientais para regular essas construções existem, mas não são utilizados. Os grandes empreendedores imobiliários da província de Buenos Aires, como Gonzalo Monarca, presidente do Grupo Monarca, negaram ser responsáveis pelo problema, que atribuem à mudança climática.
“É uma argumentação mentirosa”, reagiu Robledo. “A mudança climática se evidencia em nível mundial mas as consequências são menores ou maiores de acordo com a forma como a população esteja assentada nas cidades. “Se ocupamos um vale de inundação, que serve para a água ocupá-lo quando o rio cresce, é óbvio que a água vai correr para outras áreas”, destacou. Robledo considera que, se esse tipo de empreendimento não for regularizado ou proibido, as cidades serão inundadas por mais tempo e com maior frequência, até com chuvas menos intensas.
Pintos vai mais longe, com soluções que são “pouco simpáticas” (politicamente) e “muito onerosas”, mas que não devem ser descartadas diante do agravamento do problema. Ela recordou experiências de reassentamento de populações da margem do rio Mississipi, sobre a qual avançou historicamente a cidade norte-americana de Nova Orleans, com as consequências dramáticas do furacão Katrina em 2005.
Outras soluções intermediárias seriam proibir novos bairros privados em ecossistemas frágeis, e as autoridades reverem as autorizações concedidas para continuar construindo dentro deles. Pintos recomendou também que as empresas “enfrentem os custos de remediação”, embora essas obras fossem “um paliativo diante de uma situação crítica, que poderia ter sido evitada se houvesse prevalecido a racionalidade”.
Leandro Silva, chefe de ambiente da Defensoria do Povo da Nação, afirmou ao Terramérica que em 2010 esse órgão alertou os municípios de Zárate, Campana, Escobar, Tigre e San Fernando sobre os riscos da expansão de bairros fechados no ecossistema do delta do rio Paraná, e pediu que respeitassem estudos de impacto ambiental e exercessem rígidos controles.
“A recorrência das inundações e dos impactos sobre os cidadãos mais vulneráveis torna necessário aprofundar esses mecanismos e exercer a prevenção de modo ativo, utilizando nas bacias hídricas todos os instrumentos de gestão ambiental que a legislação exige: avaliações de impacto ambiental, participação da população, ordenamento ambiental do território e acesso à informação pública”, enfatizou Silva. Envolverde/Terramérica
* O autor é correspondente da IPS.
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