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Terramérica - República Glacial, ao resgate das geleiras do Chile

Geleira de El Morado, na Cordilheira dos Andes, na zona central do Chile. Foto: Orlando Ruz/IPS
Geleira de El Morado, na Cordilheira dos Andes, na zona central do Chile. Foto: Orlando Ruz/IPS

 

Santiago, Chile, 2 de fevereiro de 2015 (Terramérica).- As mais de três mil geleiras que existem no Chile constituem uma das maiores reservas de água doce da América do Sul, mas estão constantemente ameaçadas por grandes projetos de mineração e de infraestrutura, alertam ambientalistas e especialistas.

A falta de uma legislação que as proteja levou a organização ecologista Greenpeace a fundar a República Glacial em março de 2014, um país virtual criado sobre 23 mil quilômetros quadrados de geleiras nos Andes chilenos, que já tem mais de 165 mil cidadãos e 40 embaixadas espalhadas pelo mundo. “A República Glacial surgiu como uma necessidade, porque as geleiras neste país não estão protegidas”, disse ao Terramérica o diretor-executivo do Greenpeace Chile, Matías Asún.

As geleiras são grandes massas de neve e gelo cristalizado que guardam 69% da água doce do planeta. São formadas quando o acúmulo de neve caída durante o inverno excede sobremaneira a quantidade que derrete no verão, juntando enormes quantidades de material em um curto período geológico.

“Trata-se de reservas estratégicas de água, que contribuem de maneira significativa em períodos de seca e que estão não só no alto da montanha mas também no sul do país”, explicou Asún. “Há muitas geleiras que estão enterradas e conservam importantes reservas de água, que abastecem as bacias, e delas dependem não só as atividades humanas mais básicas, mas também a agricultura e a economia do país”, acrescentou.

O Chile, um país minerador cuja principal riqueza é o cobre, abriga 82% das geleiras da América do Sul, segundo o Greenpeace. Mas a maioria delas mostra um retrocesso evidente devido aos impactos da mudança climática e às atividades de mineração em grande escala.

Ao falar no parlamento chileno, em 2014, o especialista em geleiras Alexander Brenning, da Universidade de Waterloo, no Canadá, garantiu que a magnitude das intervenções nas geleiras do Chile não tem parâmetro no mundo e pediu que sejam avaliados seus efeitos acumulativos.

“Os especialistas são enfáticos: o Chile conta com um dos recordes mundiais de destruição de geleiras. Essa é a triste situação que nos obrigou a fundar a República Glacial”, apontou Asún. “Como as geleiras estavam na terra de ninguém, usamos esse vazio legal para fundar a República Glacial. Tomamos posse de toda a superfície glacial que existe no Chile e nos declaramos uma república independente”, acrescentou.

O país glacial foi fundado com base na Convenção sobre os Direitos e Deveres dos Estados, mais conhecida como Convenção de Montevidéu, onde foi assinada em 1933, e que em seu artigo primeiro estabelece quatro requisitos para declarar um Estado: possuir uma população permanente, um território determinado, um governo e a capacidade e manter relações com os demais Estados.

A finalidade central dessa república é obter uma lei de geleiras que seus cidadãos denominam “de cinco estrelas”, que garanta a proteção absoluta das geleiras no Chile. Também que se estabeleça por lei que “as geleiras representam reservas estratégicas de água em estado sólido” e que exista uma definição de geleira a ser estabelecida em lei.

Além disso, os ativistas pedem a inclusão na lei dos diferentes tipos de geleiras e seus ecossistemas, e definição de quais atividades são permitidas e quais as proibidas para cada um desses tipos. Por fim, se busca deixar estabelecido na lei a criação de um cronograma de transição para que os empreendimentos e as atividades que são desenvolvidas atualmente em áreas protegidas, ou potencialmente protegidas, se adéquem à nova legislação.

Uma suposta amostra de como seria a colheita de frutas e verduras sem a água das geleiras, na Feira Sem Geleiras organizada pelo Greenpeace, na Praça da Constituição, diante do palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, realizada no dia 23 de janeiro de 2015. Foto: Marianela Jarroud/IPS
Uma suposta amostra de como seria a colheita de frutas e verduras sem a água das geleiras, na Feira Sem Geleiras organizada pelo Greenpeace, na Praça da Constituição, diante do palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, realizada no dia 23 de janeiro de 2015. Foto: Marianela Jarroud/IPS

Em maio de 2014, deputados da autodenominada “bancada glacial”, composta, entre outros, pela ex-líder estudantil e atual deputada comunista Camila Vallejo, introduziram no Congresso o projeto de lei para criar um contexto jurídico que entregue a proteção das geleiras aos chilenos. A legislação atual permite que um projeto produtivo afete uma geleira, se o impacto for explicitado no estudo de impacto ambiental e compensado de alguma forma. Em agosto, foi aprovado o avanço de uma nova lei, mas ainda não há luz verde para o projeto, que gera muitas críticas.

O especialista em geleiras chileno Cedomir Marangunic, que trabalha com tecnologias para salvar e criar novas geleiras, disse ao Terramérica que é essencial, na legislação, não se fechar parte importante do território a todo tipo de atividades, como turismo ou projetos de desenvolvimento, “sem aportar nada à persistência das geleiras”, e acrescentou que se deve estabelecer o domínio das geleiras, principalmente das que estão em um terreno privado.

Marangunic, geólogo da Universidade do Chile e doutor em glaciologia pela Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, assegurou que, “embora a mineração prejudique as geleiras, a contaminação ambiental em grandes cidades, como Santiago, ou a fumaça da queima de pastagens e florestas”, também deixam marcas nesses gelos.

Mas, para a Comunidade Diaguita do Vale do Huasco, onde fica o projeto de mineração de ouro e prata Pascua-Lama, na região de Atacama, controlado pela empresa canadense Barrick Gold, não há dúvidas. “As geleiras são os reservatórios de água que temos durante milhares da anos e hoje, em tempos de seca, são os que nos mantêm com água e com vida”, afirmou ao Terramérica o porta-voz da comunidade, Sebastián Cruz.

O vale do Huasco, situado no deserto de Atacama, o mais árido do mundo, é um vale transversal que cruza a cordilheira até o mar e que se nutre da água proveniente das geleiras, acrescentou o representante da comunidade diaguita, o povo originário assentado nesse vulnerável ecossistema.

Segundo Cruz, o projeto Pascua-Lama, não só “intervém diretamente nas geleiras” como, longe de cumprir o compromisso assumido em seu estudo de impacto ambiental, já afetou as geleiras Toro 1 e 2 e Esperanza, “que estão destruídas em 99%”. Por isso, para a comunidade uma lei de geleiras deve proteger certas áreas de conservação e impedir qualquer tipo de atividade extrativista na área glacial e periglacial.

A presidente Michelle Bachelet se comprometeu em proteger as geleiras em seu discurso à nação, em maio de 2014, mas não fez outros pronunciamentos públicos a respeito. Porém, um grupo de deputados da governante Nova Maioria apoiou o projeto de lei.

Os cidadãos da República Glacial prometem se manter firmes até que seja aprovada uma “boa” lei de geleiras. “No momento, as geleiras pertencem à República Glacial e estaremos em disputa com o Estado do Chile até ouvirmos de maneira decidida um compromisso com uma lei de verdade”, destacou Asún. Envolverde/Terramérica

* A autora é correspondente da IPS.

 

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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.