Por José Adán Silva, da IPS –
Manágua, Nicarágua, 19/6/2015 – Após viver nas sombras da semiclandestinidade, milhares de mulheres nicaraguenses que se dedicam ao trabalho sexual romperam o silêncio e conquistaram o apoio institucional dos poderes do Estado para exercerem funções públicas e obter direitos que antes lhes eram vedados.
María Elena Dávila, coordenadora nacional da Rede de Trabalhadoras Sexuais da Nicarágua (TraSex), disse à IPS que, após 15 anos de organização em silêncio, as mulheres que prestam serviços sexuais por dinheiro conseguiram se converter em facilitadoras judiciais da Suprema Corte de Justiça e promotoras de saúde sexual e reprodutiva do Ministério da Saúde.
Também fazem parte da Defensoria de Direitos Humanos e contam com uma procuradora especial que vela por seus direitos, e também acabam de ser convidadas para se capacitarem em direitos políticos e servirem com funcionárias temporárias do Conselho Supremo Eleitoral nas eleições gerais de 2016. “Esse convite para nos capacitarmos em matéria eleitoral nos fortalece para reclamar e defender nossos direitos junto aos partidos políticos e candidatos”, disse Dávila à IPS.
A TraSex representa a Nicarágua dentro da Rede de Trabalhadoras Sexuais da América Latina e do Caribe, também integrada por organizações de Argentina, Belize, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e República Dominicana.
Em Manágua, a rede foi fundada em novembro de 2007, com apoio de organizações não governamentais locais e fundos de assistência social de agências de cooperação. Nasceram como Associação de Trabalhadores Sexuais Girassóis e inicialmente eram 125 mulheres que desde 1997 já assistiam capacitações em saúde e palestras sobre educação sexual reprodutiva, embora tudo de maneira informal.
Em 2009, a Procuradoria para a Defesa dos Direitos Humanos assinou um convênio de cooperação e assistência com elas e a organização começou a ganhar espaços. Agora tem registradas 14.486 trabalhadoras sexuais entre 18 e 60 anos, das quais 2.360 são associadas à Rede. “As mulheres de fora da Rede ainda desconfiam da organização ou desconhecem nossos objetivos de apoio, mas estamos trabalhando para capacitá-las em defesa de seus direitos como mulheres e como trabalhadoras sexuais”, explicou Dávila.
Pajarita de Nandaime (nome fictício) é uma das mulheres que rejeita todo tipo de organização de sua área de atuação. “Cuido de mim mesma e não confio em grupos e sociedades. Essas mulheres entram nisso para ganhar dinheiro, dólares, e depois se esquecem das demais. Esta vida me ensinou que entre putas não há amizade, apenas competição”, argumentou à IPS.
Esta jovem de 27 anos trabalha por meio de encontros marcados por telefone em horários diurnos em motéis de Manágua, e assegura que estuda turismo à noite, e nos finais de semana regressa à sua casa em Nandaime, uma pequena cidade do departamento de Granada, a 67 quilômetros da capital.
Entretanto, a organização continua ganhando terreno nas instituições públicas. Elas agora têm aliados na Assembleia Nacional Legislativa, o que lhes permite incidir nas leis referentes às suas condições de trabalho e sociais.
Carlos Emilio López, deputado nacional e vice-presidente da Comissão de Assuntos da Mulher, Infância, Juventude e Família, é um dos que apoiam a Rede. “São mulheres valentes, lutadoras, que historicamente foram estigmatizadas e discriminadas e agora vêm cobrar uma atenção que nunca lhes foi dada. É uma dívida histórica do Estado e é hora de pagá-la”, declarou à IPS.
O vice-presidente da Suprema Corte de Justiça, Marvin Aguilar, presidiu, em abril, um ato em que 18 mulheres da Rede receberam suas credenciais de facilitadoras judiciais. Na oportunidade explicou que o trabalho designado para essas mulheres permite que atuem como auxiliares e mediadoras em administração de justiça em conflitos e faltas leves, como um mecanismo de solução de conflitos mediante o diálogo.
“Somos o único país do mundo que trata as trabalhadoras sexuais como facilitadoras judiciais. O único país do mundo que não tenta prendê-las e onde a atividade não é criminalizada. Não as levamos à prisão pelo trabalho sexual”, afirmou Aguilar.
Em maio, as autoridades da Polícia Nacional nomearam uma chefe especial para atender diretamente questões de segurança da Rede TraSex e estabeleceu uma diretriz institucional para atender às suas denúncias de violência geral e doméstica com todo o rigor da Lei Integral Contra a Violência Contra as Mulheres. Antes dessa aproximação, as trabalhadoras sexuais denunciavam constantemente os policiais por abuso de autoridade, discriminação e perseguição.
Essa nova relação com os poderes do Estado permitiu à Rede TraSex incidir no conteúdo da Lei Contra o Tráfico de Pessoas, que entrou em vigor em abril. O texto original estabelecia uma conexão entre a prostituição e o proxenetismo com o crime de tráfico, e ao mesmo tempo destacava que as mulheres, incluídas as prostitutas, eram suas maiores vítimas.
Segundo Dávila, as trabalhadoras sexuais eram prejudicadas com essa dupla vinculação de vítimas e responsáveis pelos delitos, por isso a Rede propôs uma modificação que foi aceita e no texto final foi eliminado o trabalho sexual como delito vinculado ao tráfico de pessoas.
Dentro de seu empoderamento na sociedade nicaraguense, a Rede celebrou publicamente, no dia 2 deste mês, pela primeira vez, o Dia Internacional das Trabalhadoras Sexuais, que é lembrado desde 1976 em lembrança do protesto, um ano antes, na cidade francesa de Lyon, de prostituas contra a discriminação que sofriam.
Antes, em 2014, em um ato público e diante da imprensa promoveram a publicação do livro testemunhal Nem Putas, Nem Prostitutas; Somos Trabalhadoras Sexuais, no qual quatro mulheres narram suas experiências nesse trabalho e suas aspirações sociais.
Além disso, desde 2014 contam com direito a voto na Comissão Nicaraguense de HIV/aids e participam, também com voz e voto, na Mesa Coordenadora sobre HIV/aids da Nicarágua, na qual instituições oficiais, organizações sociais e organismos internacionais elaboram ações contra o HIV (causador da aids).
Apesar dos avanços que comemora, Dávila reconheceu à IPS que ainda continua a discriminação social e há muitas “batalhas a serem travadas” para seu coletivo neste país da América Central. Uma delas é estabelecer comunicação com o Ministério da Educação, para que alfabetize e reforce a educação das trabalhadoras sexuais e também garanta a proteção de seus filhos e filhas, vítimas habituais de bullying por parte de professores e estudantes, quando ficam sabendo o ofício de suas mães.
Outra batalha, segundo Dávila, é dialogar com as autoridades judiciais para que o novo Código de Família, vigente desde abril, não seja interpretado pelos juízes para tirar das trabalhadoras sexuais seus filhos e filhas em razão de seu trabalho. “Temos, agora mesmo, vários casos de mães trabalhadoras sexuais das quais as autoridades querem tirar filhos e filhas porque alguém a denunciou pelo trabalho que exerce”, destacou. Envolverde/IPS