Por ArunaDutt, da IPS –
Nações Unidas, 27/6/2016 – “Quando tem guerra, tem estupro, e quando tem estupro, tem trauma, dor e terror”, destacou Zainab Bangura, representante especial do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para Violência Sexual em Conflitos.A violência sexual é uma arma de guerra desde tempos imemoriais. Há referências bíblicas, que continuam na Guerra Civil dos Estados Unidos, seguem nas duas guerras mundiais do século 20, até outras regionais, como a da independência de Bangladesh, em 1971, e os conflitos étnicos na Bósnia e em Ruanda.
Nenhum desses conflitos excluiu o estupro e a violência sexual.Quando termina a guerra e começam as iniciativas de recuperação, os esforços, como o Plano Marshall, se concentram em reconstruir a infraestrutura e a economia. Mas é bem menos o que se faz para fortalecer os sistemas de apoio às mulheres traumatizadas pela guerra, o que significa que sofrem duas vezes: primeiro, a violência direta e, depois, o sistema de justiça que trivializa seu trauma e silencia suas histórias, apontou Bangura.
“Depois da luta para sobreviver às balas, armas e facões, vem a luta pela atenção médica, o cuidado infantil e a reparação, bem como o direito de participar dos processos políticos do país que procura ressurgir das cinzas da guerra”, acrescentou a representante da ONU. As consequências da violência sexual são sentidas em várias gerações, se amplificam com o tempo e geram uma reação em cadeia.
O dano fica nos filhos nascidos da violação, que frequentemente se sentem obrigados a permanecer nas sombras, sem documentos e emudecidos. “É como se tivessem nascido culpados, manchados pelo crime do pai”, ressaltou Bangura. As pessoas conhecidas e os lugares familiares se tornam entornos antagônicos, pois vizinhos e amigos se colocam contra as mulheres estupradas e seus filhos, culpando as próprias vítimas pela violência sexual.
Bangura deu uma conferência na segunda semana deste mês, no painel Mulheres e Meninas em Conflitos: Aprendendo Com a Experiência Vivida Para Comunicar Respostas Políticas, organizado pela ONU Mulheres, o Centro Internacional para a Justiça Transicional (CIJT), o Instituto Liu de Assuntos Globais, pela Universidade de Colúmbia Britânica e a missão permanente do Canadá nas Nações Unidas.
“A rejeição parece se propagar como uma enfermidade, pois qualquer um que se preocupe com as pessoas marginalizadas também é marginalizado”, afirmou Virginie Ladisch, diretora do programa Infância e Juventude, do CIJT. Para Bangura, é importante considerar essas crianças não como a consequência de uma violação de direitos humanos mas como sujeitos de direitos humanos.
“Não temos apenas que trazer nossas meninas de volta, mas temos que trazê-las para um ambiente de apoio e de oportunidades”, acrescentou Bangura, se referindo #bringbackourgirls, pelo caso das adolescentes sequestradas no dia 14 de abril de 2014, na Nigéria pelo grupo Boko Haram. Para isso, é preciso enfrentar o flagelo da violência sexual e o casamento forçado, bem como combater o estigma e a culpabilização das vítimas, processando os responsáveis, fazendo justiça e garantindo que as mulheres possam cuidar de seus filhos. “Só então poderemos dizer que a guerra terminou”, enfatizou.
Em 2000, o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução 1325, que chama a atenção para as diferentes consequências que os conflitos armados provocam nas mulheres, sua exclusão da prevenção dos mesmos, da manutenção e construção da paz e dos vínculos entre desigualdade de gênero e a paz mundial.
Entretanto, Nahla Valji, especialista de Paz e Segurança da ONU Mulheres, disse que após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, as novas resoluções do Conselho de Segurança dedicadas à luta contra o terrorismo foram frequentemente criticadas por não darem voz às mulheres. “Se deixamos que esse espaço seja ocupado por outros, fica vazio e acaba definido de uma forma que não necessariamente contempla as necessidades e as vozes das mulheres”, acrescentou.
Para preencher o vazio, o painel da terceira semana deste mês reuniu mulheres que sobreviveram a um conflito e sofreram violência sexual, para que contassem a difícil realidade não atendida em que se converteram suas vidas cotidianas.
Após sobreviver à violência pós-eleitoral, que aconteceu no Quênia em 2007, Jacqueline Mutere testemunhou que a ONU tem muitas respostas para o enorme número de mulheres que sofreram violência sexual, mas só contaram histórias cruéis de violações para justificar a necessidade de fundos, sem mencionar as que tiveram filhos ou as consequências de longo prazo deixadas por essa horrível experiência em suas vidas.
Mutere e muitas outras mulheres se deram conta de que as organizações falavam por elas e não as representavam de forma adequada. Por isso,ela fundou a organização Grace Agenda, que ajuda as sobreviventes da violência sexual no Quênia.“Quando me olham, vêm até mim milhares de mulheres fortes estupradas, que ficaram incapacitadas em razão dessa violação, cujos filhos tem incapacidades, ou que contraíram HIV (vírus causador da aids). “Alguém terá que pagar por essa dor. Por que o conflito de um país tem que se desenvolver em meu corpo?”, perguntou.
María Alejandra Martínez, que trabalha na reintegração de mulheres, meninos e meninas na Colômbia, pontuou que as mulheres afetadas pela guerra não querem ser conhecidas como “vítimas de estupro” ou “esposas forçadas”, ou falar de “crianças-soldado”. Elas querem ser reconhecidas como pessoas que falam e pôr fim ao silêncio.“Precisam contar sua história com suas próprias palavras. As crianças são mais do que sua experiência durante a guerra. Todas as crianças desmobilizadas têm o poder de mudar o mundo”, ressaltou. Envolverde/IPS