Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 26/11/2015 – A economia deteriorada, ainda que em diferentes graus, é comum aos países sul-americanos, nos quais os governos chamados de esquerda tendem a cair sucessivamente, em um processo iniciado na Argentina e que deve continuar em seus vizinhos ao norte.
“Não é possível ainda definir se se trata do fim de um ciclo, porque as razões de sua ocorrência continuam fortes”, mas “existe uma crise de grande complexidade, com os governos que chamo de ‘distributivistas’ em dificuldades, sobretudo no Brasil, Argentina e Venezuela”, afirmou à IPS o professor Tullo Vigevani, da Universidade Estadual Paulista.
“Não é fim de um ciclo na América Latina, mas a redução de um grupo de governos com propensão ao populismo associado ao nacionalismo”, definiu, por sua vez, o diplomata aposentado Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil na Argentina e na França. Ele acrescentou que esquerda é um conceito que perdeu validade, e prefere falar de governos populistas, destacando os de países atlânticos. “Os da costa do Pacífico são mais modernos”, afirmou.
A Argentina, sim, vive “o fim de um ciclo com normalidade democrática, o que deve ser comemorado”, após 12 anos de Presidência do nome Kirchner, apontou Azambuja, referindo-se às consecutivas Presidências de Néstor Kirchner (2003-2007) e de sua mulher e sucessora, Cristina Fernández, que entregará o poder no dia 10 de dezembro.
Entretanto, acrescentou o ex-embaixador, “qualquer governo não peronista enfrenta duras dificuldades nesse país”. Os dois últimos presidentes peronistas, Raúl Alfonsín (1983-1989) e Fernando de La Rua (1999-2001) não conseguiram concluir seus mandatos, renunciando antes.
Esse será um desafio que Mauricio Macri, chefe do governo de Buenos Aires desde 2007, que venceu o segundo turno eleitoral no dia 22, representando a opositora coalizão Mudemos, aglutinada por seu partido, o conservador Proposta Republicana (Pro), e a tradicional e mutável União Cívica Radical.
Mas, se no campo político ele contará com a divisão do Partido Justicialista (peronista), que o ajudou a vencer as eleições, no econômico terá que lidar com uma crise que se prolonga há anos e também foi decisiva em sua vitória. Paralisação e consequente desemprego elevado, inflação alta perto dos 30%, segundo analistas, mas reduzida pela metade nos índices oficiais, baixas reservas internacionais e um mercado negro em que os dólares são cotados cerca de 50% acima do câmbio oficial, são alguns problemas.
Além disso, há distorções, como forte proteção a alguns setores, gravames sobre exportações agrícolas e subsídios que afetam a produção nacional e o comércio com o Brasil, que em um momento teve a Argentina como seu principal mercado para exportações industriais. As mudanças econômicas prometidas por Macri, como acabar com o câmbio controlado e muitas das restrições ao comércio exterior, terão efeitos nas relações com os vizinhos. Mas é sua política externa que poderá alterar dramaticamente o quadro regional.
Macri quer, por exemplo, excluir a Venezuela do Mercado Comum do Sul (Mercosul), enquanto persistir o regime atual desse país, aplicando a cláusula relativa à democracia do bloco, que já levou à suspensão do Paraguai por mais de um ano, devido à destituição em 2012 do então presidente Fernando Lugo.
Reaproximação com os Estados Unidos, acordos de comércio com a União Europeia e blocos do Pacífico, e maior abertura comercial em geral fazem parte dos planos do presidente eleito, em contraposição às tendências protecionistas dos governos qualificados de esquerda, populistas, “distributivistas” ou bolivarianos, segundo os diferentes vocabulários ideológicos.
Mas espaços como Mercosul, União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) não entrarão em crise pelas mudanças políticas na região, segundo Vigevani. São organismos de ação lenta, que “servem adequadamente a alguns objetivos limitados”, indicou.
A mudança na Argentina e as crises de Brasil e Venezuela, com vertentes políticas e econômicas, apontam para uma provável onda na América Latina de governos inclinados à direita, liberais ou neoliberais, com prioridade mais à economia do que às políticas sociais de seus antecessores.
Segundo Azambuja, são situações distintas. Na Venezuela, com sua economia em virtual colapso, “meu medo é que o chavismo moribundo tenha um desenlace não democrático, diante da fragilidade do presidente Nicolás Maduro, enquanto no Brasil a mudança será seguramente democrática”.
Nesses três países do lado Atlântico, “não se administrou adequadamente a política econômica, com baixos investimentos, baixa taxa de poupança e capacitação tecnológica e não se soube desenvolver políticas para ampliar, em lugar de diminuir, o consenso. Assim, reduziu-se decisivamente a capacidade de evitar progressos liberais”, admitiu Vigevani.
O Brasil sofre uma recessão econômica desde o final de 2014, agravada por uma inflação que subirá a 10% ao ano e déficit fiscal que assusta investidores. A tudo isso somou-se o escândalo de corrupção que golpeou a Petrobras e envolveu todas as grandes construtoras brasileiras e meia centena de políticos.
Além disso, a campanha eleitoral que terminou com a reeleição da Dilma Rousseff, em outubro de 2014, foi feita com um grau de violência sem precedentes em confrontações e acusações que destruíram possibilidades de diálogo e negociação. Assim, as contradições entre o discurso eleitoral e a prática de governo ficaram tão enfáticas que tiraram legitimidade e popularidade da presidente, aprovada por menos de 10% dos entrevistados nas últimas pesquisas e ameaçada de impeachment.
A luta em que se converteu a atividade política tornou inviável maiorias estáveis e, por fim, o ajuste fiscal, que exige aprovação de reduções de gastos públicos e aumento de impostos em um parlamento amotinado. Dessa forma, se prolonga a crise econômica que o oficialismo atribui ao quadro internacional adverso e a oposição a erros do governo nos últimos anos.
“Os resultados econômicos são fatores importantes” dessa virada que favorece candidatos conservadores. “Mas, além da crise e da recessão, há problemas teóricos de fundo a serem enfrentados, para os quais tampouco os liberais têm respostas, resultando um equilíbrio, inclusive no caso argentino”, pontuou Vigevani. “O distributivismo sem capacidade de investimento, inovação e adequação do sistema produtivo não é suficiente, embora seja necessário”, acrescentou.
Subestimar ou conduzir mal as questões econômicas parece ser um “calcanhar de Aquiles” de governos ditos de esquerda ou populistas na América Latina. Essa maldição não alcança governantes que, mesmo sendo “distributivistas” e “bolivarianos”, adotaram políticas econômicas ortodoxas, como Evo Morales, no poder na Bolívia desde 2006, e Rafael Correa, que governa o Equador desde 2007.
Por outro lado, não parece possível aos novos e futuros governantes, inclusive os liberais, eliminar ou mesmo reduzir os programas sociais com que os governos “populistas” tiraram milhões de famílias da pobreza. Macri já anunciou que os manterá.
Tudo indica que se trata de uma dimensão que se incorporou à política regional, enquanto persistir a pobreza e a desigualdade social em níveis considerados inaceitáveis, como acontece na maioria dos países da América Latina, que, apesar das políticas de inclusão, continua sendo a região mais desigual do mundo. Envolverde/IPS