Internacional

Vítimas de abusos do clero católico se unem na América Latina

Os atores Luis Gnecco (esquerda) e Benjamín Vicuña, em uma cena do filme A Floresta de Karadima, interpretando o pároco pedófilo chileno Fernando Karadima e uma de suas vítimas, James Hamilton, seu “favorito” e que se atreveu a denunciá-lo. Foto: Cortesia de Constanza Valderrama
Os atores Luis Gnecco (esquerda) e Benjamín Vicuña, em uma cena do filme A Floresta de Karadima, interpretando o pároco pedófilo chileno Fernando Karadima e uma de suas vítimas, James Hamilton, seu “favorito” e que se atreveu a denunciá-lo. Foto: Cortesia de Constanza Valderrama

 

Santiago, Chile, 19/3/2015 – As vítimas latino-americanas de abusos sexuais cometidos por religiosos da Igreja Católica dão os primeiros passos para se agrupar e avançar melhor na busca por justiça, uma luta na qual encontraram um novo aliado: o cinema.

“Mais além de ser um entretenimento, o cinema é um chamado a não esquecer, a memorizar o que nos acontece como sociedade”, disse à IPS o cineasta chileno Matías Lira. No caso dos abusos sexuais cometidos dentro da Igreja, “há uma tarefa pendente em termos de mídia” e um dever como sociedade, acrescentou.

Tendo essas premissas como base, Lira dirigiu A Floresta de Karadima, um drama baseado em fatos reais, com estreia em abril no Chile, que conta a história de um dos sacerdotes mais influentes do país, que abusou sexual e psicologicamente de dezenas de jovens e forjou um império, graças ao seu enorme carisma e seu apelido de “santo”.

O filme é muito esperado no Chile, país cuja sociedade é altamente conservadora e onde 67,4% dos 16,7 milhões de habitantes se declaram católicos. A obra se soma a El Club, de Pablo Larraín, ganhador do Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro e que também aborda, desta vez pela ficção, o tema dos sacerdotes pederastas chilenos.

O caso de Fernando Karadima é emblemático. Como pároco de El Bosque, no rico bairro de Povidencia, na capital, o sacerdote forjou um império com o aval de altos chefes eclesiásticos, entre o início dos anos 1980 e sua retirada do cargo em 2006. Um tribunal canônico condenou o padre em 2011 a “uma vida de oração e penitência” por pedofilia e efebofilia, após abusar durante décadas de jovens que confiavam nele e também por amealhar uma fortuna mediante o desvio de donativos dos fiéis, segundo pesquisa do Centro de Investigação Jornalística.

O jornalista Juan Carlos Cruz foi um desses jovens. Conheceu Karadima aos 15 anos, quando seu pai acabara de morrer e se sentia triste. “Me recomendaram conversar com esse sacerdote, que era considerado um santo, um homem de enorme bondade. Era muito influente e foi impressionante quando fixou seu olhar em mim”, contou à IPS. “Ele disse que dali em diante seria meu pai, que deveria me confessar apenas com ele e que desse dia em diante seria meu diretor espiritual”, acrescentou.

Cruz reconhece que com 15 anos se escandalizou com as influentes amizades do pároco: desde o então ditador Augusto Pinochet (1973-1990) até o italiano Angelo Sodano, ex-secretário de Estado do Vaticano (1991-2006) e antes o núncio no Chile durante o regime militar (1978-1988), passando por empresários, militares e políticos. Pouco depois, Karadima, hoje com 84 anos, começou a abusar sexual e psicologicamente dele.

“O abuso psicológico às vezes é mais complicado: viver sob constantes ameaças, sob seu jugo, viver aterrorizado e não poder perdoar ainda que tenha crescido”, recordou Cruz dos Estados Unidos, onde reside atualmente. “Me considero uma pessoa inteligente, cheguei longe. Sou vice-presidente de uma multinacional e encarregado de 130 países. Mas não consigo me perdoar por ter deixado este homem me torturar por oito anos”, lamentou o jornalista.

Os horrores de Karadima vieram à público em maio de 2010, quando Cruz e outras de suas vítimas contaram seu tormento no programa Informe Semanal, da Televisão Nacional (TVN). James Hamilton, o “favorito” do sacerdote, havia contatado a TVN depois de ver nesse canal outra reportagem, sobre as aberrações cometidas por longos anos pelo mexicano Marcial Maciel, fundador da ultraconservadora congregação Legionários de Cristo e com muito poder no Vaticano durante o papado de João Paulo II (1978-2005).

Maciel, o caso mais famoso de crimes de pedofilia por padres na região, inclusive com filhos que teve apesar do celibato, morreu em 2008, dois anos depois de o papa Bento 16 (2005-2013) afastá-lo da congregação por “gravíssimos e imorais” comportamentos e por uma vida “sem escrúpulos e sem verdadeiro sentimento religioso”. Defensores de suas vítimas pediram, sem sucesso, a paralisação da beatificação de João Paulo II, como encobridor dos sistemáticos abusos sexuais do sacerdote mexicano.

No Chile, atualmente, as vítimas de Karadima lutam contra a nomeação de Juan Barros como bispo da cidade de Osorno. Segundo a denúncia de Cruz e de outras vítimas, ele presenciou e participou dos abusos pedófilos de Karadima. Longe de atender as denúncias, a Nunciatura (embaixada do Vaticano) confirmou o apoio para que Barros assuma o bispado no dia 21 de março. “Esse apoio é soberbo e estúpido”, afirmou Cruz.

As vítimas de Karadima também acusam como encobridores o cardeal Francisco Javier Errázuriz, nomeado assessor do papa Francisco. Várias investigações concluíram que o cardeal ignorou por longo tempo as denúncias das vítimas quando foi arcebispo de Santiago. Seu sucessor, Ricardo Ezzatti, também é acusado de encobridor pelas vítimas do ex-pároco.

Este é um dos contextos que levaram as vítimas de abusos cometidos por sacerdotes em diferentes países da América Latina a se reunirem no dia 16 de fevereiro na Cidade do México, para unirem forças e tentar chamar a atenção, principalmente do primeiro papa latino-americano.

“Quando o papa Francisco foi nomeado sentimos que teríamos no Vaticano alguém da casa, alguém que fala nosso idioma, que entende nossa cultura, foi um orgulho enorme. Mas as primeiras vítimas que recebeu foram dos Estados Unidos, da Alemanha e Grã-Bretanha, e nunca nos recebeu”, afirmou Cruz. “Só quero sentar-me junto a ele e lhe contar o que vivemos”, ressaltou.

E, apesar de considerar a Igreja Católica latino-americana encobridora dos abusos sexuais de seus sacerdotes, Cruz continua sendo católico fervoroso. “Vou à missa todos os domingos. Não permitirei que também me roubem algo tão precioso como a fé”, enfatizou.

O cineasta Lira também é católico, embora reconheça que existe “uma grande dívida da cúria”, tanto chilena quanto latino-americana. “Devem entender que pedir perdão não basta, o que importa é agir”, concluiu.

Unidos contra o encobrimento regional

Para enfrentar a política de encobrimento da hierarquia católica latino-americana dos abusos sexuais de seus integrantes, vítimas desses casos na Argentina, Chile, México, Peru e República Dominicana criaram uma rede de colaboração chamada Unidos. Em sua reunião de fundação, dia 16 de fevereiro, na Cidade do México, pediram ao papa Francisco que tome ações efetivas e submeta à justiça civil os responsáveis e os encobridores dos crimes.

Em carta ao pontífice, afirmam que só com uma profunda reforma da igreja e o julgamento civil dos culpados “começará o final desse grande holocausto de milhares de meninas e meninos sacrificados para evitar o escândalo e salvaguardar a imagem e o prestígio dos representantes da Igreja Católica no mundo”.

Um caso especialmente ilustrativo, segundo a nova rede, é o de Józef Wesolowski, ex-núncio em São Domingos (2008-2013), acusado de pedofilia e em prisão domiciliar no Vaticano, para onde fugiu da justiça dominicana. “Apesar de a justiça dominicana tentar sua extradição, ali o mantêm protegido”, disse Juan Carlos Cruz.

Na América Latina pisam um pouco em nós porque nossos sistemas judiciais não são os dos Estados Unidos ou da Europa. Na Filadélfia, onde vivo, há 34 padres presos, e o vigário-geral foi condenado a 21 anos por encobrimento”, acrescentou. Em fevereiro de 2014 a Organização das Nações Unidas (ONU) acusou o Vaticano de violar a Convenção de Direitos da Criança pelos abusos sexuais cometidos por seus religiosos. Envolverde/IPS