Por Lucas Ferrante, Mércio Pereira Gomes e Philip Martin Fearnside*, Amazônia Real –
A maneira em que as opções de uma comunidade são apresentadas é fundamental. Além de deixar clara a opção de dizer “não”, a opção de dizer “sim, mas apenas se certas condições forem atendidas” deve ser explicada realisticamente. Pode-se esperar uma lista de medidas de governança e assistência nesse caso, e o resultado mais provável é que esses tipos de demandas sejam convertidos em “condicionantes” anexadas às licenças ambientais. Infelizmente, o valor dessas pré-condições se deteriorou bastante.
O processo de licenciamento ambiental do Brasil envolve três licenças (preliminar, instalação e operação), cada uma das quais era tradicionalmente concedida somente depois que todos os requisitos da etapa anterior fossem atendidos.
A partir de 2002, a prática de conceder licenças para as duas primeiras etapas com as condicionantes anexadas permitiu que os projetos avançassem antes que todos os requisitos fossem atendidos. Em 2015, a Barragem de Belo Monte estabeleceu um precedente perigoso, permitindo que a licença de operação final seja concedida sem atender a todos os requisitos. A licença final tinha 40 condicionantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e 26 da Fundação Nacional do Índio (Funai), e a história subsequente mostrou que poucos desses requisitos foram atendidos (ver [1-4]).
No caso da BR-319, mesmo que a aprovação ambiental desse projeto seja atualmente uma prioridade política em todos os níveis do governo, após anos de discussão, as diferentes agências não conseguiram concordar sobre quem pagaria por um simples posto de fiscalização em cada extremidade do segmento central da rodovia, conforme exigido pelo IBAMA. É claro que, uma vez concluída a rodovia, a disposição de pagar por um extenso programa de governança e proteção das Terras Indígenas evaporaria por completo.
Embora a consulta não garanta que todos os problemas serão resolvidos, tais como impedir a mudança desfavorável do uso da terra, se a rodovia BR-319 for reconstruída sem consultar todos os povos indígenas afetados, ela servirá como um precedente perigoso para futuros projetos. Por exemplo, a atual administração presidencial anunciou o projeto de alta prioridade Barão do Rio Branco, que inclui uma estrada que serpenteia para o norte do rio Amazonas até a fronteira com o Suriname através de quatro unidades de conservação, duas Terras Indígenas e quatro terras quilombolas (áreas das comunidades tradicionais dos descendentes de escravos africanos em fuga, que têm os mesmos direitos que os povos indígenas) [5]. Essas pessoas serão consultadas ou um precedente criado pela Rodovia BR-319 permitirá que elas sejam ignoradas? A consulta aos povos indígenas é um direito desses povos e um caminho para levar a Amazônia à sustentabilidade.[6]
A imagem que ilustra este artigo mostra pessoas caminhando em trecho inundado da BR-319 em 2010 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Notas
[1] Fearnside, P. M., 2017b. Belo Monte: Actors and arguments in the struggle over Brazil’s most controversial Amazonian dam. Die Erde 148(1): 14-26.
[2] Fearnside, P. M., 2017c. Brazil’s Belo Monte Dam: Lessons of an Amazonian resource struggle. Die Erde 148(2-3): 167-184.
[3] Magalhães, S. B., da Cunha, M. C. (eds.), 2017. A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte: Relatório da SBPC. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), São Paulo, SP. 448 p.
[4] MPF (Ministério Público Federal), 2018. Justiça multa Norte Energia e União em R$ 1,8 mi por atraso em condicionante indígena de Belo Monte. MPF do Pará, Belém, Pará.
[5] Wenzel, F., 2020. Asfaltando a Amazônia: Bolsonaro inaugura trecho de rodovia federal e planeja mais mil quilômetros cortando áreas protegidas de floresta no Norte do Pará. Folha de São Paulo, Revista Piauí,14 de fevereiro de 2020.
[6] Esta série de textos é traduzida de: Ferrante, L.; M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy
Leia os artigos da série:
BR-319 ameaça povos indígenas 1: – Resumo da série
BR-319 ameaça povos indígenas 2: – O pano de fundo
BR-319 ameaça povos indígenas 3: Identificação dos povos impactados
BR-319 ameaça povos indígenas 4: – A inviabilidade econômica da estrada
BR-319 ameaça povos indígenas 5:- Promessas vazias de governança
BR-319 ameaça povos indígenas 6:- A obrigação de consulta aos povos impactados
*Lucas Ferrante é Doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia ([email protected]).
Mércio Pereira Gomes é doutor em Antropologia pela University of Florida (EUA) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. É Coordenador do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e de Epistemologia (HCTE), da UFRJ. Foi-presidente da Fundação Nacional do Índio–FUNAI (2003-2007) e representante brasileiro na elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em Assembleia Geral da ONU em 2007.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
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