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Para onde vai tanta roupa: o colonialismo moderno disfarçado de doação

por Bárbara Poerner, Carta Capital – 

Entre hiperprodução e hiperconsumo se revela o descarte e a poluição de água e solo

150 bilhões de roupas. É, definitivamente, muita coisa. E é também a quantia média produzida anualmente no mundo. Mas, ao mesmo tempo, utilizamos 36% menos peças do que há 15 anos (Ellen MacArthur Foundation).

Nesse compasso entre hiperprodução e hiperconsumo se revela o descarte, a poluição de água e solo. E também um colonialismo insistente do Norte Global que camufla como doação de roupas seu tratamento com o Sul Global, os utilizando como uma espécie de aterro sanitário.

Países do continente africano recebem muitos itens de vestuário num sistema de doação de países europeus e Estados Unidos. São enormes mercados locais onde as peças são vendidas por preços baixíssimos.

É muito provável que um sistema que produz 150 bilhões de peças ao ano vai produzir excedentes. Por que países africanos devem receber a sobra de países europeus e EUA, muitas vezes pagando a conta de um consumismo que não é seu?

Essas roupas têm uma história de vida interessante: normalmente, têm o tecido produzido na África Oriental, depois vão para Índia ou Bangladesh, são costuradas por mulheres (em suma) e transformam-se em roupas. Em seguida, são exportadas a preços baixos para países Europeus (80% daquilo produzido em Bangladesh vai para lá, conforme a OIT).

Depois de viver um período curto de tempo compondo looks do dia, muitas dessas roupas são doadas. E acabam onde? No seu berço de origem. 70% das roupas doadas na Europa vão parar no continente africano, conforme a Oxfam.

Conversamos com Hadeel Osman, estilista e diretora do Fashion Revolution no Sudão, sobre como se desenvolve essa dinâmica em países do leste africano e quais as implicações no mercado e população local. Confira:

Fashion Revolution: Como funciona o mercado de roupas de segunda mão no Sudão e em países vizinhos?
Hadeel: No Sudão e no leste da África, as roupas de segunda mão ocupam a maior parte do mercado de roupas e, em muitos casos, são a principal fonte de roupas para os cidadãos. Existem vários níveis de mercados de segunda mão; mercados de rua, butiques e revendedores em mídias sociais. Os mercados de rua são tipicamente a escolha mais acessível dentre os três, pois depende de comerciantes independentes selecionando e transportando as roupas de segunda mão importadas principalmente dos países ocidentais, em contêineres que contêm centenas de milhares de toneladas.

As butiques contam principalmente com a curadoria de itens exclusivos, antigos e de marca, e geralmente são administrados por comerciantes preocupados com moda, que cresceram fora do espaço em suas barracas de mercado ou se reposicionaram para atingir uma classe diferente de cidadãos, aumentando frequentemente os preços para parecer mais exclusivos. Os revendedores da internet dependem de plataformas de mídia social gratuitas para atingir seu público, como uma forma muito mais fácil de comércio eletrônico – e geralmente cobram pela entrega.

Fashion Revolution: De que forma e de que localidade vêm essas roupas, e onde costumam ser comercializadas?
Hadeel: Essas roupas geralmente vêm dos EUA e da Europa, com uma quantidade expressiva da Península Arábica e da Ásia. As roupas que as pessoas no Ocidente doam para instituições de caridade locais e internacionais, bem como brechós, acabam sendo divididas em duas pilhas diferentes. Um é mantido para vender localmente e a grande maioria é embrulhada em fardos e embalada em contêineres enviados para a maioria dos países africanos, entrando pelos portos marítimos.

Outras fontes dessas peças de vestuário são de empresas e comerciantes que enviam excesso de estoque ou rejeitam roupas que não podem ser vendidas devido a defeitos no design. Em alguns casos, no Sudão, essas roupas costumavam chegar por meio de instituições de caridade e igrejas, que costumavam levar para os cidadãos que viviam em campos em áreas devastadas pela guerra, que depois eram contrabandeadas por comerciantes para mercados em várias cidades.

Fashion Revolution: Você percebe como o mercado de roupas de segunda mão afeta a economia do seu país?
Hadeel: No momento é difícil dizer com precisão, pois temos informações limitadas disponíveis para nós nos mercados de segunda mão no Sudão, junto com a indústria local de manufatura têxtil. Além disso, a atual situação econômica no Sudão está em constante declínio há muitos anos. […] No entanto, como alguém que vive no país e está ciente do mercado de roupas de segunda mão e do crescente cenário da moda contemporânea, certamente tem um efeito, porque as pessoas têm maior probabilidade de comprar roupas mais baratas e facilmente acessíveis, do que roupas mais caras feitas sob medida de marcas locais.

Fashion Revolution: Como você acredita que esse problema pode ser resolvido – avaliando desde a diminuição da produção de roupas até a subversão da visão abusiva dos EUA e da Europa sobre os países africanos e asiáticos?
Hadeel: Definitivamente, isso pode ser resolvido, mas levará algum tempo. Todo o ciclo global da moda precisa ser revisado e alterado desde o primeiro passo, para que possamos ver mudanças reais e uma redução do despejo de roupas na África e na Ásia. Muitos governos da África Oriental impõem proibições aos EUA e à Europa para reduzir ou parar completamente a importação de roupas de segunda mão. Isso coloca as nações africanas em uma posição de poder, que a supremacia branca e a colonização bloquearam com sucesso por muitas décadas.

Esses mesmos governos reconhecem como é vital apoiar e até capacitar a indústria manufatureira têxtil local, pois agora vêem as vantagens econômicas e sociais da moda africana, que vem recebendo muitas reações positivas da comunidade internacional nos últimos anos.

Se mais governos se unirem, é uma grande oportunidade para a União Africana se envolver e decidir controlar a quantidade de roupas de segunda mão que entram em suas fronteiras, então uma reação em cadeia vai acontecer. Afinal, uma grande porcentagem dessas roupas não é muito diferente de desperdício, o que não é necessário em lugar algum. Ao colocar uma parada legal, ética e econômica nos abusos praticados pelos países da América e da Europa e pelas empresas de moda de lá não seremos mais o lixão deles. Essa independência pode realmente alimentar um boom industrial e artesanal em todo o continente.

Mudar as engrenagens, subverter os sistemas

Em alguns países da América, a prática também acontece, principalmente no fluxo EUA-Haiti: os estadunidenses usam, descartam, e as roupas vão parar nos mercados de roupas e corpos haitianos. Um exemplo é o livro “Pelè”, do fotógrafo canadense Paolo Woods, que compila vários retratos de cidadãos do país usando camisetas advindas da América do Norte com frases aleatórias e deslocadas de sentido.

É importante conhecer e analisar a prática da doação de roupas, que compõe a fragmentada e intransparente cadeia produtiva da moda, e quais as implicações da globalização da produção e consumo de vestuário. É muito provável que um sistema que produz 150 bilhões de peças ao ano vai produzir excedentes; o emblemático é: por que países africanos devem receber a sobra de países europeus e EUA, muitas vezes pagando a conta de um consumismo que não é seu? E por que produzir tanta roupa a ponto de não sermos capazes de utilizá-las em sua integridade?

Uma parte do sistema de moda mostra a face do colonialismo ao escolher países africanos para ser o cemitério de seu próprio lixo. A solução do problema é diversa e, por isso, exige a atuação de múltiplos atores. Mas para pautar o assunto com seriedade, precisamos falar em produzir menos, fazer a transição para novas economias, e transformar em cemitério o colonialismo e o imperialismo tardio, possibilitando o renascimento da moda enquanto uma ferramenta de regeneração e empoderamento em qualquer lugar do mundo.

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