Por Jullie Pereira, InfoAmazonia
Dados da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas mostram que 24.462 mil pessoas adquiriram doenças diarreicas em outubro deste ano, contra 19.155 mil no mesmo mês de 2022. Comunidades sofrem com a estiagem e acabam consumindo água sem tratamento e de poços improvisados.
Febre, diarreia, vômito, dor muscular e dor abdominal são alguns dos sintomas que 24.462 pessoas precisaram enfrentar durante outubro deste ano no Amazonas. Eles são os sinais das doenças diarreicas, que neste ano apresentaram aumento de casos devido à seca. O registro dessas enfermidades foi 28% maior do que no mesmo mês do ano passado, quando houve 19.155 casos. Os dados são da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas – Dra. Rosemary Costa Pinto (FVS-RCP), órgão responsável pelas ações de vigilância epidemiológica, sanitária, laboratorial e ambiental do estado.
“Quando a gente tem o período de vazante e de estiagem, o que acontece é que diminui a oferta de água potável. Com essa diminuição, aumenta o risco de contaminação. Por isso, a gente trabalha principalmente com a questão das doenças que são de veiculação hídrica, nesse caso as principais são as doenças diarreicas agudas”, explica Tatyana Amorim, presidente da FVS.
De acordo com a fundação, o número de internações continua estável, mas isso pode estar ocorrendo devido à dificuldade de locomoção para chegar aos hospitais. No momento, as unidades básicas estão fazendo atendimento.“Eles fazem a entrada pela atenção primária e recebem o medicamento e também os sais para reidratação oral. Uma das principais consequências da diarreia é a desidratação, que também é o nosso maior problema com a seca”, complementa Amorim.
A doença não tem preferência por idade ou por gênero, qualquer um está suscetível. As principais causas são: ingestão de água sem tratamento; consumo de alimentos sem procedência; consumo de frutas e legumes sem higienização adequada; e condições de saneamento e de higiene precárias.
No Amazonas, o que ocorre são cenas dramáticas de pessoas que estão bebendo, tomando banho e lavando alimentos com água sem tratamento. Com a seca histórica, os moradores de comunidades do interior estão cavando pequenos poços e encontrando olhos d’água, próximos de onde estavam os rios, e utilizando até restar apenas a lama. Isso está ocorrendo em comunidades do Médio Solimões e no município de Autazes. Em reportagem recente, a Repórter Brasil também mostrou as mesmas ocorrências no município de Borba.
“Com o tempo e a quantidade de famílias utilizando uma mesma cacimba [poço caseiro], a água vai ficando imprópria para o consumo e outra cacimba precisa ser providenciada. Relatos de comunidades que têm poços artesianos, que já são um menor número de comunidades, apontam que a água trazida também já virou lama”, conta a arqueóloga Marjorie Lima, do coletivo Unidos pelo Médio Solimões.
Uma hora de água
A aldeia Murutinga, situada em Autazes, onde vivem 3 mil pessoas do povo Mura, também está enfrentando as doenças diarreicas. Por lá, a comunidade é dividida em três regiões: do centro, do Igarapé do Curará e do Igarapé do Veneza. Os dois igarapés estão secos.
Todo dia, os moradores de cada área têm uma hora para abastecer suas casas. Eles têm um poço e recebem doações de água potável, mas, com a escassez, algumas pessoas também estão cavando poços e utilizando água sem tratamento.
“Aqui em casa todo dia aparece alguém com dor de barriga, tem gente bebendo água das cacimbas [poço improvisado]”, conta Tuniel Mura, vice-conselheiro da aldeia Murutinga, do povo Mura.
Túnel conta que até para receber doações de água potável o caminho é longo. Ele anda mais de uma hora para chegar ao ponto de coleta. “Estamos nos virando como podemos. Para receber algumas doações temos que nos deslocar da aldeia para uma vila para ir buscar. A distância é grande a pé, pois é impossível de barco, parece que ainda tem água, mas, na verdade, é lama”, conta.
Os rios do Amazonas começaram a subir alguns centímetros no fim de outubro, mas timidamente. Na região de Autazes, onde fica a aldeia Murutinga, no Médio Amazonas, o último registro, em 21 de novembro, mostrou uma cota de 0,69 cm. A pior cota mínima já registrada nessa região foi de 0,36 cm, vista em 26 de outubro. No momento, todos os 62 municípios do estado estão em alerta e já são 598 mil pessoas atingidas.
A arqueóloga Marjorie Lima afirma que ainda falta muito para a estiagem acabar e que esses centímetros não fazem diferença para quem está enfrentando a escassez da água. “Há uma ideia rasa, que talvez tem a ver com o pouco conhecimento sobre a Amazônia e sobre ciência, de que os problemas estão com os dias contados ou que acabaram. Isso não é verdade. Os efeitos da seca são severos e persistentes em muitas, se não todas, as populações tradicionais da Amazônia. A dificuldade de acesso e locomoção nos rios continua”, conta.
‘Pandemia da diarreia’
O coletivo Unidos pelo Médio Solimões surgiu para ajudar cerca de 5 mil pessoas que vivem dentro de três unidades de conservação (UCs) e sofrem com a estiagem: a Floresta Nacional de Tefé (Flona Tefé), a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDSA) e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM). Na organização, 19 pessoas se locomovem para fazer doações, buscam ajuda médica ou divulgam a situação de vulnerabilidade da região.
Marjorie conta que, devido à grande quantidade de relatos, as comunidades já estão chamando de “pandemia da diarreia”. O coletivo acompanha de perto os casos. A arqueóloga diz que, neste mês, um dos integrantes ajudou a conseguir soro para a comunidade Moura, da Flona Tefé, localizada a uma distância de 12h para chegar quando o rio está cheio, normalmente. Hoje, com a falta de água, eles constataram que a viagem está demorando dois dias.
“Núcleos menores compostos pelas lideranças são os que têm se deslocado para chegar à cidade e levar medicamentos às comunidades. Porém, medicamentos básicos nem sempre são acessíveis à população das comunidades junto às UBSs. Acompanhamos uma liderança da comunidade de Moura à Secretária de Saúde de Tefé para requisição de soro para conter diarreias e somente com esse intermédio o medicamento foi liberado”, relatou Marjorie.
Em vídeo disponibilizado pelo coletivo, o comunitário Welison André, da RDSA, mostra como está o igarapé que antes banhava o terreno de sua casa. Ele conta que a água era usada para o consumo e, agora, está seca. Ele vai andando em meio à lama e mostra que nenhuma canoa está passando.
“Infelizmente, sabemos que o estado e município têm infraestrutura menor do que é necessário para atender as comunidades ribeirinhas e indígenas. Em momentos como esse, onde há intensificação de sintomas e muita dificuldade de deslocamento também das equipes de saúde, há uma sobrecarga do sistema muito difícil de vencer. Nesse sentido, um dos principais gargalos é o acesso, tanto para as pessoas chegarem à cidade para buscarem serviços médicos, quanto para as equipes de saúde chegarem às comunidades”, diz Marjorie.
Doenças hídricas
A FVS-RCP faz o controle de doenças no estado e está formalmente vinculada à Secretaria de Saúde do Amazonas. Em 12 de outubro, a fundação publicou uma nota informativa listando todas as doenças e agravos relacionados ao período de estiagem.
De acordo com a FVS, o Amazonas está vulnerável a pelo menos 13 efeitos à saúde humana, entre eles: doenças gastrointestinais agudas; doenças de transmissão hídrica e alimentar; doenças transmitidas por vetores e zoonoses; desidratação com risco de agravamento de doenças crônicas; doenças infecciosas e parasitárias; verminoses e transtornos psicológicos.
A fundação está distribuindo hipoclorito, substância usada para limpar água. Em outubro, foram distribuídos 1 milhão de frascos no estado. De acordo com a fundação, os casos de diarreia são os mais preocupantes neste ano, em comparação com as doenças listadas na nota informativa. No dia 12, a FVS também disponibilizou um formulário em que os agentes municipais precisam responder sobre os casos registrados.
Saneamento básico e água
O epidemiologista Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia, afirma que existe uma demora no monitoramento desses agravos e que eles precisam ser analisados com mais antecedência. A FVS publicou a nota informativa em outubro, mas a estiagem já se apresentava no Amazonas desde agosto.
“Estamos falando dos efeitos da seca e dos efeitos da fumaça há mais de três meses. Olha o nível do atraso, né? Então, é algo que se repete, a negligência das autoridades municipais, das autoridades do estado do Amazonas em relação afazer o alerta antes de iniciar a estiagem. Era necessário fazer isso em junho, em julho”, diz.
O especialista diz que as doenças hídricas se agravam ainda mais quando associadas à falta de saneamento básico, vista no Amazonas. Ele avalia que as medidas para garantir a resolução desse problema de infraestrutura devem ser prioridade para conter os danos das secas e das cheias extremas.
“Falta água. A gente já sabe disso, mas nessa situação é importante lembrar que a parte de saneamento básico, como esgoto sanitário e gerenciamento de resíduos sólidos, são muito precários no estado e se tornam um problema ainda maior nesse período, o que potencializa todas as doenças. Não basta distribuir água, precisa de atenção às políticas públicas”, diz.
A capital do Amazonas, Manaus, é uma das piores cidades no ranking de saneamento básico, feito pelo Instituto Trata Brasil. Apenas 25,58% da população total tem acesso à coleta de esgoto. O instituto deu a nota 4.82, considerando diversos ítens de atendimento, deixando o município em 83º lugar no ranking em 2023.
(Envolverde)