por João Soares, Deutsche Welle –
Estudo aponta intensificação e diversificação das formas de expropriação do território indígena em 2019, primeiro ano de Bolsonaro. Invasões e ataques mais que dobraram na comparação com 2018.
José Maria Guajajara, de 61 anos, está com medo. Nos últimos 15 anos, 50 representantes de seu povo foram assassinados – uma média superior a três por ano. O ancião teme que a morte de seu filho Paulo Paulino Guajajara, em novembro do ano passado, no Maranhão, torne-se apenas um número.
“Eu só quero a justiça, porque não estão contando a história certa pra mim”, diz ao telefone, da cidade de Amarante (MA). Em janeiro deste ano, o Ministério Público Federal devolveu o inquérito sobre a execução de Paulino à Polícia Federal, que havia descartado a hipótese de emboscada, bem como qualquer relação com conflito étnico.
Assim como o pai, Paulino integrava o grupo dos “Guardiões da Floresta”, indígenas legitimados pela Funai e o Ibama para realizar ações de proteção do seu território em diferentes áreas do Maranhão. Ele faz parte das estatísticas do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Nesta quarta-feira (30/09), foram divulgados os dados referentes a 2019, primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro. O estudo revela um agravamento generalizado dos indicadores.
Apesar de ligeira queda do número de homicídios na comparação com 2018, os casos de violência mais que dobraram, de 110 para 276 ocorrências. A publicação elenca 19 categorias de violência, incluindo ameaças, racismo e desassistência de saúde. No ano passado, 16 delas registraram aumento.
Vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Cimi destaca no sumário executivo do relatório a intensificação e diversificação das formas de expropriação do território indígena. Como exemplo, a organização cita a onda de incêndios na Amazônia e no Pantanalno ano passado, que se repetem em 2020 mesmo após ampla repercussão internacional.
“Muitas vezes, as queimadas são parte essencial de um esquema criminoso de grilagem, em que a ‘limpeza’ de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários”, diz o estudo. O indicador que mede “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” saltou de 109 casos em 2018 para 256 no ano passado, um aumento de 134,9%.
Reflexos de Brasília
Roberto Liebgott, coordenador do Cimi e um dos organizadores do relatório, explica que os queimadas levam a uma migração forçada de povos indígenas, o que intensifica a vulnerabilidade dessas populações. Na avaliação de Liebgott, a deterioração da proteção territorial tem relação com a política e o discurso adotados pelo governo desde seu início.
“Com Bolsonaro, houve uma espécie de sinalização para que todas as áreas fossem invadidas por quem tivesse algum tipo de interesse de exploração econômica. Antes, havia um processo de invasão sistemático, mas que nos parecia mais cuidadoso com relação a um impacto tão ostensivo como o visto agora, quando se incendeia tudo”, diz Liebgott.
As 256 invasões observadas no ano passado se desmembram em 544 ocorrências, pois registram mais de um dano ou conflito. Desse total, 208 tinham no ato de invadir a motivação central. Outras 89 diziam respeito à exploração ilegal de madeira e desmatamento, enquanto 39 estavam relacionadas ao garimpo e à exploração mineral nas terras indígenas.
Suicídio volta a aumentar
Embora não seja possível elencar o estado ou região de maior vulnerabilidade para os povos originários, o relatório chama atenção para a situação de Mato Grosso do Sul, que abriga a segunda maior população indígena do país. Há registro de prática de tortura no estado, inclusive de crianças.
Os guarani-kaiowá constituem o grupo mais vulnerável da região. Além de conflitos históricos com outras etnias vizinhas, agravados pela distribuição dos indígenas em reservas ao longo do último século, há uma forte tensão entre indígenas que buscam recuperar terras expropriadas e fazendeiros do estado.
São vários os impactos socioculturais desse contexto, como a ida de indígenas para as periferias das zonas urbanas, onde são vítimas de preconceito generalizado. O mais impactante, porém, é a alta incidência de suicídio entre os povos de Mato Grosso do Sul — notadamente o povo Guarani-Kaiowá.
O estado contabilizou 34 das 267 notificações nessa categoria em 2019, atrás apenas do Amazonas, com 59. No panorama nacional, houve um avanço de 31,7% no número de casos em relação ao ano anterior, após queda de 21,1% registrada em 2018.
Para o líder guarani-kaiowá Otoniel Ricardo, que é vereador em Caarapó (MS), a questão do suicídio entre indígenas exige uma análise cuidadosa. Mas, em sua leitura, está intrinsecamente ligada à perda dos territórios e ao preconceito racial no caso de seu povo.
“Nossa juventude hoje não tem alegria de ser Guarani-Kaiowá. Para nós, a ligação espiritual com a natureza é tudo. Eles não vivem mais os rituais e festas que são da nossa tradição, correm risco de morrer se passarem no meio da fazenda e sofrem bullying se vão para a universidade. Falta liberdade e respeito.”, afirma.
Alta na mortalidade infantil
O indicador que mede os suicídios integra um capítulo do relatório que trata dos casos de violência por omissão do poder público. Outro fenômeno que se destaca nesse segmento é a escalada da mortalidade infantil, que teve um aumento de 39,6% no número de casos entre 2018 e 2019.
Dos 825 registros em 2019, 248 se concentram no Amazonas, seguido por Roraima (133) e Mato Grosso (100). Os três estados abrigam comunidades que vivem a longas distâncias dos centros urbanos e, portanto, dependem exclusivamente da assistência prestada pelo subsistema de atenção á saúde indígena.
O coordenador do Cimi recorda que o governo federal deixou de financiar os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) por quase cinco meses em 2019. Para Roberto Liebgott, o fim do programa Mais Médicos em um contexto de fragilização da estrutura de assistência à saúde indígena teve um peso decisivo para o aumento da mortalidade infantil.
“O subsistema sempre teve carência de médicos, a qual foi suprida em grande medida pelo programa. Eles tinham o olhar muito importante da medicina preventiva. Quando Bolsonaro rompeu com o programa, só restaram agentes de saúde indígena na ponta”, lembra.
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