Política Pública

O desafio por maior liberdade para viajar

Por Patricia Grogg, da IPS – 

Havana, Cuba, 20/2/2017 – Em toda passagem de ano muitos cubanos saem às ruas com uma mala. Dão uma volta no quarteirão e voltam para suas casas, se esquivando da água que seus não menos entusiastas vizinhos jogam de portas e janelas. Os primeiros esperam “conseguir viajar”, os outros só querem espantar os maus espíritos de seus lares. Durante décadas, a saída para outro país, temporária ou definitivamente, esteve sujeita a fortes restrições, suavizadas ou eliminadas pela Lei de Migração vigente desde janeiro de 2013.

Viajantes no saguão do terminal internacional do Aeroporto Internacional José Martí, na capital de Cuba, onde uma grande tela informa sobre os próximos voos. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Com o recente fim de benefícios para imigrantes cubanos nos Estados Unidos, cresceu a expectativa de uma nova atualização da legislação de Cuba. Ao completarem quatro anos da reforma migratória do governo Raúl Castro, uma das mais esperadas pela população, informes oficiais mostram que nesse período viajaram legalmente para o exterior 671 mil cubanos. Desse total, 45% já regressaram, e a maior parte dos que ainda estão fora “se encontra dentro do prazo de 24 meses” concedido, segundo foi informado.

A lei, que substituiu a de 1976, suprimiu burocracia e custosos trâmites de saída, aumentou o tempo de permanência no exterior de 11 para 24 meses, prazo sujeito a prorrogações por “causas justificadas”, e fez com que o passaporte, e o visto nos casos em que é exigido, sejam os únicos documentos de viagem. Em uma consulta da IPS, no entanto, vários cidadãos concordaram em afirmar que, diante das mudanças na política norte-americana para a emigração cubana, estabelecidas em 12 de janeiro, abre-se o desafio de uma reforma da lei de 2013, para garantir aos residentes cubanos o direito de sair e entrar no país quando desejarem.

Nesse dia, oito antes de deixar a Presidência, Barack Obama revogou a política dos “pés secos, pés molhados”, vigente desde 1995, que concedia residência aos cubanos que chegassem aos Estados Unidos. Obama argumentou que com a normalização das relações bilaterais não tinha sentido esse tratamento diferenciado aos migrantes procedentes de Cuba.

“Não que eu espere mudanças, mas o próprio governo cubano já anunciou que as realizará ao informar sobre o acordo Cuba Estados Unidos e do fim da política de pés secos, pés molhados”, opinou o cibernauta Joaquín Borges-Triana. “Penso que cada cidadão deveria poder permanecer no exterior o tempo que desejasse e retornar a Cuba quando quisesse”, acrescentou.

Homem mostra passaporte cubano junto com bilhetes aéreos diante da embaixada do Equador em Havana, reclamando da decisão do governo de Quito de passar a exigir visto de entrada no país para os cubanos. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

O economista cubano Mauricio de Miranda, residente na Colômbia, considera que, nas atuais condições de Cuba, é de “urgente revisão” a política migratória e a correspondente lei. Em sua opinião e na de outros especialistas consultados pela IPS, a legislação cubana deve incorporar o reconhecimento constitucional da dupla cidadania.

Entre outras modificações desejáveis, Miranda citou a eliminação de qualquer categoria migratória que classifique os cubanos em residentes dentro e fora do país, liberdade para entrar e sair a todo portador de passaporte cubano e reconhecimento pleno de todos os deveres e direitos dos cidadãos, com independência de seu lugar de residência.

A ampliação do período de vigência do passaporte cubano para dez anos, sem necessidade de pedir prorrogação nesse período, “tal como ocorre na maior parte de países”, e fixar seu custo em moeda nacional também constam das modificações esperadas. Cerca de 9,6% dos que viajaram entre janeiro de 2013 e dezembro de 2015 passaram a ser emigrantes segundo a lei cubana modificada, que estabelece a perda da residência em Cuba quando um cidadão desse país passa mais de 24 meses no estrangeiro.

Desse grupo, 5,7% ficaram nos Estados Unidos, principal receptor da emigração cubana. Nesse país, separado de Cuba por apenas 150 quilômetros, residem quase dois milhões de emigrantes cubanos, 57% deles nascidos na ilha. A mudança feita por Obama, adotada depois de negociações com o governo de Havana, frustrou os sonhos de milhares de cubanos de chegar aos Estados Unidos amparados no tratamento preferencial para os migrantes cubanos que vigorava desde 1995.

Passageiros entram em um avião com destino ao exterior no Aeroporto Internacional José Martí, em Havana. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

A política de pés secos, pés molhados dava aos cubanos a possibilidade de permanecerem no país, serem acolhidos pela Lei de Ajuste e obter residência como refugiados. Além disso, desde 2006, para seu amparo surgiu o programa especial para os médicos cubanos, destinado a receber os profissionais que abandonassem suas missões em terceiros países.

“Creio que é o momento estratégico”, apontou à IPS a pesquisadora Susan Eckstein, da Universidade de Boston, sobre a emigração cubana. Em sua opinião, Obama quis fortalecer as possibilidades de acabar com o aumento maciço da imigração não autorizada de Cuba para os Estados Unidos. Nos últimos anos, milhares de cidadãos cubanos saíram legalmente de Cuba, após venderem suas casas e demais pertences, para tentar chegar aos Estados Unidos a partir de países latino-americanos que depois fecharam suas fronteiras devido às ondas migratórias.

Durante 2016, um total de seis mil frustrados emigrantes foram mandados de volta para Cuba, segundo dados oficiais. “Obama não iniciou a mudança antes das eleições nos Estados Unidos para evitar influir no voto do Estado da Flórida”, onde a Lei de Ajuste é muito popular entre a comunidade cubana, destacou Eckstein em declarações dadas por e-mail. Ela lembrou que a administração Obama recebeu em 2016 quase 55 mil imigrantes cubanos, e bloqueou a entrada de dezenas de milhares de haitianos que fugiram por iguais ou piores condições humanas que os cidadãos procedentes de Cuba.

Havana acusa Washington de incentivar com fins políticos a emigração ilegal e insegura de Cuba. Agora só resta em vigor a Lei de Ajuste, destinada a garantir tratamento especial como refugiados políticos aos emigrantes cubanos, aprovada pelo congresso norte-americano em 1966, quatro anos após ser estabelecido o embargo contra esse país, e ainda em vigor apesar da flexibilizado em sua aplicação.

As autoridades cubanas alegam que essa lei não se corresponde com o contexto atual, de normalização dos vínculos bilaterais depois do restabelecimento das relações diplomáticas em 2015. Envolverde/IPS