Por Carlos Rittl*
Em artigo para o site Direto da Ciência, Carlos Rittl, do OC, explica por que a falta de uma correção na INDC brasileira pode significar um passe livre para o país poluir mais até 2030.
No dia 12 de setembro, o Brasil deu um passo importante ao se tornar um dos três primeiros grandes poluidores do mundo a ratificar o Acordo de Paris sobre mudança do clima. A velocidade da ratificação – apenas três meses e 29 dias entre o envio ao Congresso e a promulgação, em meio à crise política – surpreendeu muita gente: afinal, o Protocolo de Kyoto, que não interferia em nada na economia nacional, levou quatro anos em tramitação. Havia quem duvidasse de que uma ratificação célere de Paris fosse possível. Mas a tônica do novo acordo parece ser esta: após duas décadas de procrastinação e inação no clima, a burocracia internacional enfim começa a tentar alcançar a velocidade do mundo real. E o mundo real tem pressa.
Deveria merecer comemoração, portanto, a adesão formal do Brasil ao Acordo de Paris sobre a Convenção-quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), assinada por 179 países no Rio de Janeiro em 1992. Com essa adesão, nossa INDC (Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida), pela qual o país prometeu cortar 37% de suas emissões em 2025 e 43% em 2030 em relação aos níveis de 2005, transforma-se em NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada, sem o “I”). O que era intenção torna-se compromisso obrigatório perante a ONU.
Porém, o que deveria ser motivo de aplauso pode estar acompanhado de um problema. Isso porque, no momento da ratificação, o governo abdicou de fazer ajustes na INDC que refletiriam uma mudança nos números usados como referência para a construção das metas. A ausência dessa correção pode ser interpretada tanto pelo próprio governo quanto pela comunidade internacional como um crédito para em 2025 emitir 21% mais do que em 2014. Como isso é possível?
Trata-se de uma questão de ano-base e métrica de cálculo de emissões. O ano de referência da NDC, a partir do qual os cortes deveriam ser feitos, é 2005. Naquele ano, as emissões do Brasil registraram um dos seus maiores valores históricos devido a um pico do desmatamento na Amazônia em 2004. A partir de 2005, o desmatamento caiu, derrubando as emissões. Não há nenhum problema em fixar essa base arbitrária, já que é facultado aos países definir suas linhas de base de emissões. China e Índia usam, também, o ano de 2005 como referência. Além disso, até mesmo alguns países industrializados, que, em tese, teriam o ano de referência fixado em 1990, como no Protocolo de Kyoto, usaram o ano de 2005 para a definição de suas linhas de base, como é o caso dos EUA, do Canadá e da Austrália.
A NDC brasileira não traz informações sobre nossas emissões em toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e). Tais números são encontrados apenas em um anexo, que o próprio governo registrou como “apenas para fins de esclarecimento”, portanto sem valor legal. Naquele anexo, informa-se que em 2005 o país emitia 2,1 bilhões de toneladas de CO2e. Aplicando os percentuais da meta, chegaríamos aos limites de 1,3 bilhão de toneladas em 2025 e 1,2 bilhão em 2030.
A origem desses números não é informada. Mas, aparentemente, trata-se um misto de cálculos feitos a partir dos dados do Segundo Inventário Nacional de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa, publicado em 2010, e de Estimativas Anuais de Emissões, publicadas em 2014. O inventário nacional dá a contabilidade oficial das emissões para 2005 e ajusta, por conta de aprimoramentos metodológicos, os dados de emissão dos anos anteriores.
Em abril de 2016, o Ministério da Ciência e Tecnologia divulgou, de forma um tanto atabalhoada, o Terceiro Inventário Nacional, que registra as emissões brasileiras até 2010. Por conta de avanços metodológicos na forma de calcular emissões de desmatamento e remoções de carbono da atmosfera por florestas, os números de emissão de todo período anterior foram ajustados. Os dados para 2005 deram um susto no governo: o Terceiro Inventário mostra que, naquele ano, nós emitimos 2,7 bilhões de toneladas, cerca de 25% mais do que o estimado na INDC (ora NDC). Nossa dívida climática era mais alta — mas, em compensação, o dado também sugeria que nossas reduções entre 2005 e hoje foram muito maiores.
O comportamento do Executivo frente ao Terceiro inventário foi muito confuso. A Casa Civil segurou a sua publicação por quase um ano. Sem o inventário publicado, o Ministério do Meio Ambiente, cuja equipe questionava os novos cálculos, baseou-se então no inventário oficial mais recente (o segundo) para a elaboração da nossa então INDC (uma explicação interessante para isso está em artigo de Mauro Meirelles de Oliveira Santos no Direto da Ciência). Já o Itamaraty, com pompa e circunstância, comunicou à ONU em maio que as novas contas mostravam que o Brasil havia reduzido suas emissões ainda mais do que que se imaginava (veja o grau de satisfação com a Terceira Comunicação Nacional do atual chefe da Divisão de Clima e Ozônio do Ministério de Relações Exteriores, Felipe Gomes Ferreira, aos 34m18s em vídeo da UNFCCC).
Aplicando o percentual de 37% de redução sobre 2,7 bilhões de toneladas, teríamos um total absoluto de emissões de cerca de 1,7 bilhão de toneladas. Como em 2014 emitimos 1,3 bilhão, segundo a métrica do governo, que inclui remoções de carbono por florestas em áreas protegidas, ganharíamos o “direito” de aumentar as emissões até 2025 e cumprir a meta mesmo assim. Daí o Observatório do Clima ter feito seguidos apelos ao governo para que fizesse o ajuste na INDC antes que ela se tornasse NDC. Ou bem deixávamos claro na meta oficial o limite absoluto de 1,3 bilhão de toneladas em 2025 e 1,2 bilhão em 2030, ou bem aumentávamos nossa ambição “nominal” para 53% em 2025 e 57% em 2030. O governo ainda não fez nem um, nem outro.
Em artigo em Direto da Ciência, Gilberto Câmara, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e um dos artífices da INDC, defendeu o não-ajuste afirmando que as comunicações nacionais, que contêm os inventários, são documentos “políticos” e não técnicos – portanto, o governo teria o direito de escolher o inventário que bem entendesse na formulação da INDC.
Sob a ótica jurídica, a afirmativa é perfeita. Só que a atmosfera não está nem aí para as regras da diplomacia. O aquecimento global já ultrapassou 1ºC e estamos a meros cinco anos de estourar o limite de poluição que nos permita ter meros 2/3 de chances de segurar o aquecimento global em 1,5ºC, a meta ideal do Acordo de Paris.
Do ponto de vista do clima, portanto, ignorar os cálculos mais atualizados Terceiro Inventário pode ter efeitos perversos: a contribuição do Brasil para solucionar a crise climática pode ser menor do que o prometido para a negociação do Acordo de Paris; e o monitoramento da trajetória mundial de emissões frente àquela que nos mantém dentro dos limites do acordo do clima fica prejudicado se a contabilidade global não é construída a partir das reais emissões atmosféricas de gases de efeito estufa.
O pesquisador Mauro Meirelles, que participou da elaboração do Terceiro Inventário, afirmou, por outro lado, também neste espaço, que mesmo que o governo federal reconheça este inventário como a melhor informação técnica sobre as emissões do Brasil em 2005, um ajuste na meta poderia não ser “técnica ou politicamente possível”, porque envolveria aumento de custos e um possível sacrifício de “áreas prioritárias para o desenvolvimento” (como se proteger cidadãos brasileiros de extremos climáticos não fosse uma prioridade para o desenvolvimento).
Nós, do Observatório do Clima, resolvemos esse problema. Uma engenharia reversa da INDC do Brasil feita pela equipe do SEEG (Sistema de Estimativa de Emissão de Gases de Efeito Estufa) do OC mostrou que as políticas e medidas listadas pelo governo federal para cumprir a meta seriam capazes de entregar emissões de 1,3 bilhão de toneladas em 2025 e de 1,047 bilhão em 2030 — ou seja, ainda menos do que o estimado no anexo da NDC, usando justamente os métodos do Terceiro Inventário.
A nossa mensagem é que o governo Temer poderia ajustar a meta de clima sem ter de acrescentar qualquer meta setorial ou custo às informadas no anexo da NDC. Trata-se simplesmente de ajuste em redação, portanto, que resultaria em maior transparência em nossa comunicação com a comunidade internacional. A cobrança pelo devido aumento na ambição brasileira, necessário para ajudar esticar o orçamento de carbono de 1,5ºC até o fim deste século, deverá ser tratada tendo em vista a oportunidade de revisão do grau de ambição climática de todos os países, que se dará, já com o Acordo de Paris em vigor, em 2018.
Enquanto o governo não completar o serviço, iniciado com a ratificação, e enviar uma emenda à nossa NDC para a ONU, ficaremos diante de uma interrogação preocupante: qual é o verdadeiro grau de ambição climática do Brasil?
A boa notícia é que as regras do Acordo de Paris permitem ajustes ou trocas nas metas a qualquer tempo, desde que estes não impliquem em menos ambição. Se o presidente Temer quiser dar mais um passo positivo na agenda de clima nacional e internacional, que faça de imediato o ajuste na NDC brasileira. Desta forma, o Brasil chegaria à próxima conferência do clima (COP22), em Marrakesh, tendo feito as suas primeiras lições de casa. Mas, se não o fizer até a COP22, algum negociador mais curioso poderá ocasionalmente perguntar se a meta brasileira é, de fato, de redução ou aumento absoluto de emissões em relação aos níveis atuais. Não precisamos correr o risco de pagar esse mico. (Observatório do Clima/ #Envolverde)
* Carlos Rittl é secretário-executivo do Observatório do Clima desde 2013. Formado em administração pública pela FGV-SP, mestre e doutor em biologia tropical e recursos naturais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), atua há 20 anos na área ambiental. Há 10 anos dedica-se aos temas de florestas, energia, sustentabilidade e mudanças climáticas, tendo liderado a Campanha de Clima do Greenpeace no Brasil (2005 a 2007) e o Programa de Mudanças Climáticas e Energia do WWF-Brasil (2009 a 2013).
** Publicado originalmente no site Direto da Ciência.