por Samyra Crespo –
Fui ao CCBB, no Rio, ver a mostra de fotografias de nações indígenas da Amazônia do fotógrafo ativista japonês Hiromi Nakagura. A curadoria é de Ailton Krenak que o acompanhou em diversas viagens à região.
O acervo já tem 30 anos. As fotos são dos anos 80/90.
Portanto, a atmosfera é nostálgica. Fala-se do passado.
Talvez quase nada do que vemos ali ainda exista.
Talvez boa parte resista.
Afinal, acreditar na resiliência é importante para se seguir em frente.
Acreditar que uma certa visão ‘edênica’ das culturas dos povos originários do Brasil vá perdurar também é uma possibilidade.
A despeito da brutalidade com que as coisas acontecem na Amazônia na atualidade.
Num depoimento confessional gravado com ambos, Nakagura e Krenak, ouvimos suas apreciações sobre a amizade que os uniu e sobre valores/princípios que defendem.
Comparando, esteticamente, as mostras fotográficas sobre a cultura indígena amazônica que conheço, de autoria de Sebastião Salgado, Andujar (com belissimo acervo em Inhotim) e Nakagura, não há dúvida de que a visão do ‘bom selvagem’ e edênica estão presentes. Em todos eles.
Artisticamente falando, gosto mais dos registros de Sebastião Salgado.
Mas o que quero expressar não é bem o meu gosto pessoal, mas a preocupação com a persistência dessa ‘visão do paraíso ‘, um paraíso perdido, ou implacavelnente ameaçado, ou pior, em vias de extinção.
O que se ‘bebe’ nesse tipo de Mostra é um elixir emocional que nos remete ao passado e não ao presente.
Faço essa crítica com uma extrema preocupação, dado que a realidade hoje – bruta como disse, é a de ataque e expropriação das condições objetivas de vida das comunidades indígenas.
Quase a metade da população do País, a que votou em Bolsonaro, sabia que a vida dos indígenas iria piorar muito.
Atraso versus progresso ainda é a chave que move o país.
Assim, nesse mundo de celulares, vacinas, utilitários ‘4 X 4’, ajudas emergenciais, necessidade de representações políticas e de engajamento na luta desses povos por terra e soberania, penso que os temas são outros.
O apelo dos ‘povos isolados’ não funciona.
Nem o do ‘último rinoceronte branco’ sobre a Terra.
Nossa pena se esfarela em miríades de pequenos fragmentos: tem o drama dos refugiados, dos famintos em Gaza, das ararinhas contrabandeadas, dos yanonamis desnutridos, tudo dá uma pena danada.
E no dia seguinte, novas penas, novos dramas.
Estes outros temas a que me refiro, não são diferentes daqueles das comunidades outras que vivem na pobreza e na privação de direitos, seja na periferia das cidades ou nos grotões rurais, tais como: necessidades de atendimento à segurança alimentar, à saúde, à segurança física e à oportunidade econômica de educar-se e prosperar.
Diante da incapacidade sistêmica de protegermos as reservas indígenas (estado e sociedade civil), estou bastante desiludida com a tutela que imaginamos exercer sobre nossos irmãos herdeiros ou descendentes dos povos originários.
Não vejo no horizonte um modo viável em que possam manter hábitos e comportamentos autônomos. O assédio é inclemente.
Acho que há um tremendo erro de origem nesse nosso modo de olhar para a questão indígena como o fazemos hoje em dia.
No simbólico andamos bem? Pedindo perdão pelas injustiças, reconhecendo o legado dos massacrados, extintos… oferecendo o fardão da ‘panelinha’ elitista da ABL a um legítimo pensador indígena?
No plano real, pisamos nos mesmos rastros de sertanistas, em crenças presunçosas ou bem intencionadas de antropólogos, em missionários religiosos e não-religiosos. Ancoramos nosso pesar ou indignação numa mídia engajada que nunca pós os pés num igarapé ou maloca.
E se pôs ficou encantado.
Ao sair da mostra do CCBB fui à loja onde artesanato indígena estava à venda: pulseirinhas, bugigangas e cestaria… Há décadas as mesmas coisas, agora as penas são de plástico para poupar os pássaros…
Muitos livros com capas bonitas à venda: só dois de indígenas: Davi Kopenawa e Ailton Krenak.
Eles são porta vozes da filosofia do ‘Pisar suavemente sobre a Terra’, e só ouvimos os estrondos de bombas, o rugir de terremotos, o medo estalando em eventos catastróficos, a água das enchentes cobrindo o nariz.
As fotos dos anos 90′ aludem a um tempo otimista que se foi.
Estamos prontos para enfrentar a desilusão?
O que ela tem a nos ensinar?
*Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.
* a Mostra ficará no Rio até 24 de maio