Em voto separado divergente às conclusões apresentadas pelo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul para investigar se o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) incita e financia “invasões” indígenas em propriedades rurais privadas no estado, o deputado estadual Pedro Kemp (PT) – na foto – pede o arquivamento do processo porque “não vislumbra” qualquer ação ilícita praticada pelo Cimi. O parlamentar ressalta que, portanto, os encaminhamentos da CPI pedindo o indiciamento de missionários, missionárias e assessores da instituição são completamente descabidos.
Os argumentos de Kemp foram expostos em mais de 100 páginas, com análise dos principais depoimentos, ‘provas’ materiais e na sistematização dos dados embasando-os no objeto da investigação. Kemp foi um dos cinco parlamentares integrantes da CPI, presidida pela deputada ruralista Mara Caseiro (PSDB) e relatada pelo também deputado ruralista Paulo Corrêa (PR) – responsável pelo documento final. Os deputados Onevan de Mattos (PSDB) e Marquinhos Trad (PSD) completaram o quadro titular da CPI criada em 22 de setembro de 2015 e encerrada em 10 de maio de 2016. Foram realizadas 35 oitivas das mais de 50 previstas por convocações realizadas ao término das sessões.
A diferença entre “invasão”, termo usado pela CPI, e retomada, segundo o entendimento dos povos indígenas, começa a dissuadir todo o sentido do relatório final da CPI. Como o direito constitucional ao território é originário, ou seja, estes povos aqui estavam antes da formação do Estado Nacional, o direito, portanto, é à terra. “A terra indígena não é criada por ato constitutivo, e sim reconhecida a partir de requisitos técnicos e legais, nos termos da Constituição Federal de 1988, e se configura um bem da União, portanto inalienável e indisponível, e os direitos sobre ela são imprescritíveis”, lembra o voto. Os indígenas, então, não podem invadir terras que lhes pertencem e das quais foram expulsos, no caso do Mato Grosso do Sul, em tempos históricos recentes.
O voto do parlamentar lista uma série de jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) onde a Corte Suprema não entende as retomadas como invasões. Inclusive com ministros ressaltando que as chamadas condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não se estendem às demais terras indígenas do país – em uma destas condicionantes, fica vedada a ampliação apenas de Raposa Serra do Sol. “Neste contexto, como buscar provas que desaguem em finalidade ilícita, sem contudo, haver fundamento jurídico para classificar o fato como delituoso? Como podemos chegar a conclusão que o Cimi fornece os meios para execução de um fato ilícito, se este fato não é entendido pelos tribunais como crime?”, diz Kemp.
Os vícios da CPI do Cimi são de origem, na compreensão de Kemp. A instalação da Comissão, na opinião do deputado, não se enquadrou nos ditames do regimento interno da Assembleia Legislativa e tampouco no que prega a literatura jurídica nacional. Se por um lado o fato determinado não se caracterizou de acordo com os termos legais, por outro a delimitação do objeto da investigação tornou-se um problema permanente na cadeia do trabalho legislativo. Para o deputado, “etapas da instrução processual foram preenchidas por atividades que trouxeram informações de pouca relevância para o propósito central dos trabalhos”.
De acordo com trecho do voto do parlamentar, “a responsabilidade na incitação e financiamento de invasões de terras particulares por indígenas em nosso estado, aceita como fato determinado, é uma abordagem genérica e, por isso, dificultou a construção da estratégia para elucidar os fatos”. Como o Cimi se enquadra em pessoa jurídica e de direito privado, sem o recebimento de quaisquer recursos públicos, o parlamentar defende em seu voto ser ilícita a interferência do Poder Legislativo com o agravante que a investigação buscou fatos determinados de conduta criminosa na forma do Direito Penal.
Além desses elementos, onde os integrantes da Comissão chegaram a exercer poderes de outros órgãos do Estado, os limites dos trabalhos foram extrapolados para a esfera federal. “Como o legislativo estadual não pode depositar competência às suas comissões parlamentares de inquérito para além daquelas a ele próprio designadas por nosso ordenamento jurídico, fica claro que muitos elementos materiais levantados para atingir o objetivo proposto na CPI dizem respeito a assuntos atinentes a processos criminais ou a litígios judiciários civis envolvendo demarcação de terras indígenas, cuja competência é da esfera federal”, conclui Kemp.
Uma outra constatação do parlamentar aponta para desvio de conduta da CPI: “Com o levantamento integral de toda documentação, foi possível constatar ainda a ausência de ofício da presidência endereçado ao Cimi, com a finalidade específica de comunicar a sua condição de “investigado” (…) e encaminhar toda a documentação pertinente à denúncia que motivou o ato legislativo (…) na forma do art. 5º da Constituição Federal:“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Teoria da conspiração
Kemp ressalta que a CPI teve os dois primeiros depoentes em caráter de palestra – como atesta o próprio relatório final. Lorenzo Carrasco e Nelson Ramos Barreto, os palestrantes, “não assinaram o termo de compromisso com a verdade, fato que inviabiliza as opiniões e relatos serem tratados como produção de provas”, pontua o voto do parlamentar.
Documentos aprensados à Comissão demonstraram ainda o real teor do procedimento legislativo: boa parte já havia passado por investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF), onde em nenhum caso serviu para embasar ações judiciais contra o Cimi.
O caso mais exemplar é o pacote de “provas” entregue pela presidente do Sindicato Rural de Antônio João, Roseli Ruiz – meses antes, a depoente liderou um comboio de caminhonetes que culminou no ataque à retomada Guarani e Kaiowá na Terra Indígena Ñanderu Marangatu; um indígena foi morto durante o ataque.
No voto do relator, o ruralista Paulo Corrêa, a construção de uma narrativa que associa a fundação do Cimi com os resultados da Convenção de Barbados, ocorrida no final de janeiro de 1971, busca revelar um plano mirabolante pela constituição da “República Guarani” e a entrega de riquezas nacionais a forças estrangeiras – desvelando com a ficção um sério atentado à segurança nacional.
Conforme a “palestra” de Lorenzo Carrasco, a chamada “teoria do indigenato”, cujo teor consiste em questionar a “teoria do descobrimento para afirmar que as terras descobertas não mais deveriam pertencer ao país ou Coroa”, foi apresentada à CPI. A partir dela, uma porção de contradições são apresentadas no voto de Kemp para desconstruir argumentos esdrúxulo que passaram a fundamentar todo o voto de Corrêa.
Carrasco é enfático ao afirmar que o Cimi designou o antropólogo austríaco Georg Grünberg de ter convocado a Convenção de Barbados. “Atualmente, Grünberg está empenhado na missão de criar uma nação guarani, na estratégica região da tríplice fronteira Argentina-Brasil-Paraguai, explicitamente, em oposição ao projeto de integração do Mercosul. Esse indivíduo que foi encarregado pelo Cimi de organizar essa reunião em Barbados está por trás de toda essa questão de criar uma suposta nação guarani”, disse Carrasco em seu depoimento. No entanto, esqueceu que o Cimi foi fundado pouco mais de um ano depois, em 1972.
“A conclusão, para tanto, é muito obvia, basta fazer o seguinte questionamento: Como poderia o Cimi, instituição fundada em 1972 ter encarregado Georg Grünberg de organizar o Simpósio de Barbados ocorrido em 1971, um ano antes da sua origem? Ou ainda: o Cimi foi criado em 1972, em Barbados?”, questiona Kemp em seu voto. O parlamentar expõe que buscou associar documentos da Convenção de Barbados e do próprio Cimi para averiguar possíveis desrespeitos às legislações vigentes. Encontrou, entre outros, entendimentos relacionados aos direitos territoriais dos povos indígenas.
Para Kemp, informações desprovidas de veracidade lançaram uma cortina de fumaça na produção das provas necessárias para a instrução do processo; isenção e imparcialidde deram lugar a induções, superstição e obscuridade. “O construto teórico do Sr. Lorenzo Carrasco apresentou-se questionável, por facilmente ser percebida a falta de tratamento científico, porque, narrativa sem provas, ausência de rigor na análise dos dados e desobrigação com o registro histórico dos fatos, aparenta muito mais com as chamadas “teorias da conspiração” sendo, portanto, inapropriada para fundamentar qualquer documento de peso público”, conclui Kemp.
Desfazendo o malfeito
“Um trecho extraído do site do Cimi, em que se pôde verificar os valores impulsionadores de sua conduta. Na tentativa de justificar o apoio às comunidades indígenas, que estariam sendo ao longo dos anos vilipendiadas pelos modelos sociais então existentes, não faltam palavras como luta, o que demonstra esse caráter aguerrido, questionador e desrespeitador das instituições, pois toda essa conduta se volta ao Estado de Direito, a soluções já apresentadas pela legislação específica e que não pode ser ignorada (SIC)”.
O parágrafo acima, que consta no relatório final elaborado pelo deputado Pedro Corrêa, demonstra uma das várias tentativas de criminalização do Cimi. No caso, o deputado se refere ao que considera uma decisão aberta do Cimi para apoiar aquilo que o ruralismo chama de invasões. “Analisar sobre este prisma incorre em uma injustiça sem precedentes, uma vez que, a expressão ‘luta’ é corriqueiramente empregada em documentos, manifestos, até mesmo em legislações, como por exemplo, projeto de lei, oriundo desta Casa de Leis, que deu origem a Lei Estadual nº 2.486, de 10 de julho de 2002, que institui o Dia Estadual de Luta pela ética na Política e Contra a Corrupção”, diz Kemp em trecho do voto.
Não sem efeito Corrêa banaliza a palavra luta atrelando-a a atividades criminosas – inclusive de forma semântica. O objetivo foi nitidamente de construir a narrativa de que tal luta a qual o Cimi se compromete motivou o início das “invasões” de propriedades privadas no Mato Grosso do Sul. Fato refutado por Kemp em seu voto com dados científicos. O parlamentar cita pesquisadores que no Mato Grosso do Sul constataram o início do movimento reivindicatório por terra na metade dos anos 1970.
“No que se refere a presença do Cimi em nosso Estado, está datada no ano de 1979. Dados históricos afirmam que anterior a sua fixação da regional – MS, há registros que as comunidades indígenas já sofriam os impactos da perda dos valores culturais, ocorrendo registros de um alto número de suicídios e de grandes taxas de violência interna. Pesquisas científicas relatam esta realidade”, diz trecho do voto. Kemp ressalta que após a Constituição de 1988, com o artigo 231 e 232 conferindo direitos territoriais aos povos indígenas e a ausência de efetivação, se intensificou o movimento no estado.
Inquérito da PF arquivado
Quanto às provas de incitação a desobediência de ordem judicial presentes na CPI, o inquérito da Polícia Federal n.º IPL 215-13. Nele está a investigação policial contra membros do Cimi referente a responsabilidade em articular e incentivar toda desobediência à ordem judicial referente ao despejo de aldeia Terena na Terra Indígena Buriti. O IPL 215-13 constrói uma narrativa de que integrantes do Cimi articulam guerrilhas e a prova cabal está na apreensão do computador do jornalista do Cimi Ruy Marques de Oliveira, contendo um arquivo com conteúdo intitulado “material anarquista”.
Com base neste inquérito que o relatório final propôs a apuração de responsabilidade penal de Flávio Machado, Ruy Marques (que assina Ruy Sposati, sendo Sposati o sobrenome de sua mãe), Irmã Joana e todos os demais representantes das instituições civis presentes em Buriti, por incitar a prática de crime, art. 286; que também devem ser responsabilizados pela morte do indígena Oziel Gabriel. A partir deste inquérito conclui que todos os membros do Cimi que acompanhavam reintegração de posse da Fazenda Buriti foram responsáveis pela resistência dos indígenas em sair da área.
“Com relação a este inquérito, informamos que sua condição de prova contundente restou comprometida com a decisão da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que arquivou o inquérito 0215/2013 da Polícia Federal”, sintetiza Kemp. Para o parlamentar, não resta mais nada a tratar em informações de um inquérito arquivado pelas autoridades.
“O senhor tem alguma prova? Sim ou não?”
O deputado Pedro Kemp fez aos 35 depoentes um mesmo questionamento: “O motivo desta CPI é apurar que o Cimi esteja financiando o confronto armado, colocando em risco a vida dos índios e não índios, e incitando. Senhor tem alguma prova? Sim ou não?”. Em seu voto separado, o parlamentar lista todos.
Em nenhum dos casos é possível verificar a existência de qualquer prova afirmativa no sentido de se levar ao entendimento de que o Cimi e seus integrantes tenham cometidos ilícitos.
Ademais, os depoentes que imputaram ações criminosas ao Cimi, incluindo o delegado da Polícia Federal Alcídio de Souza Araújo, que dirigiu as investigações do inquérito arquivado, se basearam no “ouvi dizer”, “me contaram”, “sei, mas não posso provar”.
Sobre os indiciamentos individuais encaminhados pelo relatório final da CPI do Cimi, Kemp é enfático: “Refutamos a conclusão de restar caracterizado tipificações delituosas em qualquer conduta atribuída aos membros do Cimi, bem como aos indígenas Lindomar Ferreira e Alberto França, por apoiar as retomadas, uma vez que elas não são tipificadas como invasões pelas instâncias jurisdicionais. Portanto, não pode ser considerado crime, conduta com o propósito de prestar qualquer tipo de apoio”. E segue: “Para tal conclusão, novamente questionamos a tipificação da ilicitude: Onde está prescrito que retomada é crime? E como esta CPI não tem como objetivo investigar os indígenas e suas organizações internas nada mais é possível declarar”.
No que tange aos prejuízos causados a produtores rurais, de acordo com o relatório do ruralista Paulo Corrêa, por uma campanha de boicote ao agronegócio realizada por movimentos sociais no Mato Grosso do Sul, Kemp defende que o fato não guarda qualquer relação com o objeto a CPI. “Teriam estes que ser apontados, inclusive, com identificação dos ditos produtores prejudicados”, afirma.
E conclui: “Por todas as razões, exaustivamente delineadas, apresentamos este voto em separado, discordando do mérito do voto, quanto às imputações criminais aos membros do Cimi e, especialmente, a civil, que responsabiliza a Igreja Católica pelos danos causados aos proprietários rurais e aos povos indígenas, por ter certeza que o maior responsável por este quadro de conflito é o próprio Estado Brasileiro”. (CIMI/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site do CIMI.