Por Tharanga Yakupitiyage, da IPS –
Nações Unidas, 5/12/2016 – Pela primeira vez, a Organização das Nações Unidas (ONU) emitiu um pedido formal de desculpas pelo papel que desempenhou no foco de cólera que atingiu o Haiti em 2012, e anunciou novas medidas para ajudar a enfrentar a crise de saúde pública que foi criada. O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, se referiu ao assunto em um emotivo discurso diante dos delegados da Assembleia Geral, expressando seu profundo arrependimento pela dor e pelas mortes causadas pela epidemia de cólera.
“Em nome da ONU quero pedir desculpas ao povo haitiano. Simplesmente, não fizemos o suficiente em relação ao foco de cólera e à sua propagação no Haiti. Estamos profundamente arrependidos por nosso papel”, afirmou Ban no dia 1º deste mês. O secretário-geral fez seu discurso, transmitido pela televisão no Haiti, primeiramente no idioma crioulo, e depois repetiu em francês e inglês.
O foco de cólera, que surgiu depois do terremoto de 2012, deixou mais de dez mil mortos e cerca de 800 mil pessoas infectadas até agora, um em cada 12 haitianos. Numerosas investigações, entre elas uma do Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos, relacionaram os primeiros casos de cólera com a chegada de soldados do Nepal para integrarem o corpo de manutenção da paz.
Um mês antes de encerrar seu mandato, Ban pontuou que o caso deixou uma “mancha” na reputação do corpo de manutenção da paz. A ONU reconheceu pela primeira vez sua responsabilidade na crise de cólera em agosto, quando o porta-voz do fórum mundial, Farhan Haq, declarou que a organização havia se “convencido de que deveria fazer muito mais em relação à sua própria participação no foco inicial”.
Desir Jean-Clari, da organização Boucan Care – que sobreviveu ao cólera, mas perdeu a mãe para a doença –, considerou as desculpas uma “vitória”. “Enviamos milhares de cartas e fomos às ruas para conseguir essa vitória, e eles disseram ser responsáveis”, relatou o Instituto para a Justiça e a Democracia no Haiti. “Agradecemos pelo que disseram, mas não pode acabar aí, porque ainda há cólera em todo o país”, destacou.
O senador norte-americano, Edward Markey, que havia cobrado da ONU o pedido de desculpas, declarou se tratar de um “importante primeiro passo para a justiça” para os haitianos. “O povo do Haiti há tempos merece mais do que apenas o reconhecimento pela dor e pelo sofrimento que passou, em grande parte pela negligência da ONU”, afirmou o senador pelo Partido Democrata, que integra o subcomitê sobre Política de Saúde Global e África.
Embora represente uma mudança depois de mais de seis anos negando sua participação ou responsabilidade, as desculpas das Nações Unidas ficam assumir seu envolvimento na introdução do cólera no Haiti. “Agora reconhecemos que tivemos um papel nisso, mas chegar ao ponto de assumir a total responsabilidade de tudo é um passo que não podemos dar”, disse o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Jan Eliasson. “Temos que seguir com esse trabalho. Poderá haver mais erros trágicos no futuro, mas temos que manter a perspectiva de longo prazo”, acrescentou.
O pedido de desculpas ocorre depois que um tribunal de apelações dos Estados Unidos confirmou, em agosto, a imunidade da ONU no processo iniciado por milhares de vítimas do cólera. Segundo Eliasson, a decisão do tribunal ajudou a proteger as operações humanitárias e de manutenção da paz da ONU. Foi um ponto de partida para as desculpas e um mapa do caminho. “Essa é a razão pela qual agora podemos avançar e adotar essa posição de aceitar a responsabilidade e chegar ao ponto de pedir desculpas é nossa forma de passar uma mensagem de apoio”, ressaltou.
Mas as palavras só podem chegar até aí, concordaram Eliasson e Ban Ki-moon. “Pelo bem do povo haitiano, e também pelo bem da ONU, temos a responsabilidade moral de agir e temos a responsabilidade coletiva de cumprir”, afirmou o secretário-geral. Ban detalhou em um informe um enfoque de atenção de duas vias para reduzir e terminar com a transmissão do cólera, somado a um plano de desenvolvimento de longo prazo dos serviços de água, saneamento e saúde do país, cujas falências facilitam a propagação da doença.
Já está em andamento a primeira parte da proposta, que inclui o envio de equipes de resposta rápida e programas de vacinação, mas ainda falta ser definida a segunda fase, em função do resultado das consultas. Para essa fase da proposta, Ban indicou que se trabalhe diretamente com a população haitiana mais afetada. As reparações individuais poderiam ser um elemento a considerar, embora tenha mencionado as dificuldades de se implantar um programa desse tipo, que precisaria incluir a identificação das pessoas falecidas, além do oferecimento de uma quantia fixa por morte causada pelo cólera.
A organização solicitou um total de US$ 400 milhões para o programa de dois anos e implantou um sistema de contribuição voluntária para as duas vias. Até agora foram recebidos US$ 150 milhões. Entretanto, para que a ONU possa concretizar seu ambicioso programa, é necessário que os Estados membros façam contribuições voluntárias. “A ação das Nações Unidas requer a ação de seus membros. Sem sua vontade política e seu apoio econômico, ficaremos apenas nas boas intenções e palavras”, enfatizou Ban. “Com sua história de sofrimento e grandes dificuldades, o povo do Haiti merece essa expressão tangível de nossa solidariedade”, concluiu. Envolverde/IPS