Por Mario Osava, da IPS –
A décima edição dos Jogos Paraolímpicos terminou no dia 18, após 11 dias de competições, com a participação de 160 países e 4.359 atletas.
Rio de Janeiro, Brasil, 20/9/2016 –Cintia Girelli Ribeiro demorou um ano para admitir que não recuperaria o movimento e as forças de suas pernas, depois do acidente automobilístico que provocou fratura na sua medula, em 1987, quando tinha 22 anos. Ela estava com um grupo de jovens voltando de uma festa e todos haviam consumido bebidas alcoólicas, especialmente o motorista. O carro capotou e dois ocupantes ficaram paraplégicos.
Rejeitava a cadeira de rodas, na crença de que o dano seria passageiro. Familiares a carregavam ao banheiro e a outras partes da casa, em Porto Alegre. “Mas a fisioterapia não deu o resultado esperado”, reconheceu, e se deu conta de suas novas condições de vida. O tratamento para conviver com a deficiência permitiu a Cintia conhecer uma jogadora de basquete em cadeira de rodas, que a convidou para se juntar à equipe no Rio de Janeiro. Foi o que fez, mas com reservas.
Em 1992, começou a treinar, dois anos depois foi chamada para a seleção nacional e em 1996 participou dos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, nos Estados Unidos. “Ganhei uma vida nova, com muitos amigos e viagens, reconhecimentos com medalhas”, contou. Eram tempos pioneiros no Brasil: as jogadoras se acomodavam em alojamentos coletivos, com pobre alimentação, “café da manhã de pão e café com leite”, mas Cintia está orgulhosa de ter sido uma das que impulsionaram o esporte de alto rendimento para deficientes no país.
“Hoje os atletas se hospedam em hotéis, têm boa alimentação e ganham bolsa-atleta para se dedicar aos treinamentos, dispõem das melhores cadeiras de rodas e equipamentos de tecnologia avançada”, apontou Cintia à IPS. Sua história tem muito em comum com as de outros atletas com deficiência. A prática esportiva começa como terapia, “tanto física quanto mental, que cura depressões, melhora o quadro geral, e depois apaixona”, para se transformar em uma profissão ou semi profissão, como é o caso de Cintia.
A décima edição dos Jogos Paraolímpicos terminou no dia 18, após 11 dias de competições, com a participação de 160 países e 4.359 atletas. Em agosto, o Rio de Janeiro já havia recebido a 31ª edição das Olimpíadas. Para Cintia, os Jogos Paraolímpicos contribuem para reduzir preconceitos, mostrando que pessoas com deficiências podem ser “atletas, não super-heróis e tampouco coitados”. Além disso, ajudam no desenvolvimento de novas tecnologias e soluções arquitetônicas de acessibilidade, que melhoram a vida de todos.
Entretanto, Claudia Werneck, jornalista dedicada à inclusão social de pessoas deficientes, teme que essa separação paraolímpica, com “celebração dos mais frágeis em um momento especial prejudica a inclusão”. Ela disse à IPS que “seria mais pedagógico o contato entre olímpicos e paraolímpicos, pois a Paraolimpíada acentua a segregação e uma mentalidade antiga de celebrar a deficiência em dias específicos”.
Werneck argumentou que “os seres humanos não nasceram separados, mas mesclados, com todas suas diferenças, e a inclusão é uma prática de todos os dias. Não se imagina brancos e negros separados em torneios esportivos”. A educação inclusiva, que junta nas mesmas aulas os estudantes mais diversos, com deficiências ou não, é uma batalha de Werneck que fundou a organização não governamental Escola de Gente.
Outra de suas campanhas promove o Teatro Acessível, cujos espetáculos contemplam audiodescrição para os cegos, língua de sinais para surdos e outros recursos que permitam a ativa participação de todos. Garantir direitos às pessoas com deficiência sempre é seu objetivo.
Os Jogos Paraolímpicos e Olímpicos “separam os dois extremos, os melhores de um lado e os mais prejudicados de outro, sem considerar a multiplicidade de formas, o que é negar a inclusão”, ressaltou Werneck. A ativista reconhece que a Paraolimpíada Rio 2016 entusiasmou e emocionou o público. Mas “emoção não leva à transformação social”, ressaltou.
Seu medo é que os jogos segregados estimulem “um retrocesso que é fortalecer a ideia de que pessoas com deficiência têm direitos especiais, não comuns, e são felizes separados”. É difícil imaginar como mesclar os dois eventos, embora em algumas modalidades olímpicas, como boxe, outras lutas e levantamento de peso, as disputas já ocorram em categorias distintas, em geral definidas por limites de peso, e poderiam ser incorporadas novas classificações.
Algum dia será preciso enfrentar, por exemplo, a questão da altura no voleibol e no basquetebol, monopolizados por atletas cada dia mais altos. São modalidades que excluem os mais baixos. A Paraolimpíada compreende classificações muito mais complexas e variadas, baseadas em graus de deficiência às quais se seguem controvertidas qualificações, que levam a contínuos recursos.
Como o de Cintia, que acredita que foi prejudicada por sua classificação em 1996 em um nível superior à sua condição real, o que lhe tirou a possibilidade de participar dos Jogos Paraolímpicos seguintes. A nadadora brasileira Joana Neves, afetada pelo nanismo, de 1,23 metros de altura, ganhou duas medalhas de prata e uma de bronze no Rio, competindo com mulheres muito mais altas, portanto com os braços mais longos, o que pode ser decisivo na natação, mas com outras deficiências, como amputações.
Mas os Jogos Paraolímpicos já se converteram em um grande negócio consolidado, um espetáculo para milhões de espectadores presentes e milhares de milhões telespectadores, e por isso é inimaginável que perca sua identidade. Têm aspectos melodramáticos muito fortes e diversificados para se converter em um espetáculo midiático sedutor, somando-se à competição esportiva. Praticamente todos seus atletas têm biografias interessantes, mas algumas são comovedoras.
Sebastián Rodríguez, nadador espanhol, perdeu suas pernas em uma greve de fome de 432 dias, após ser condenado a 84 anos de prisão por atos terroristas. A natação foi sua redenção e lhe permitiu competir em alto nível até agora, aos 59 anos. Um dos fotógrafos mais respeitados da Paraolimpíada do Rio é um deficiente visual. João Maia perdeu a capacidade de visão aos 28 anos, mas não a sensibilidade de quem foi lançador de peso, dardo e disco. Agora, aos 41 anos, só vê vultos, o que é suficiente para suas impactantes imagens.
Campeões de arco e flecha e de natação que não têm braços, um piloto de Fórmula Um e da Indy que praticamente morreu em um acidente em 2001, ficando sem circulação sanguínea por 15 minutos, e ressurgiu como ciclista medalha de ouro, uma anã que nada mais rápido do que mulheres de altura normal, são algumas histórias especiais.
Paralelamente a tudo isso há uma realidade de milhões de pessoas sem acesso a locais públicos, sem trabalho e sem escolas, devido às suas deficiências. No Brasil fala-se de 45 milhões de pessoas “deficientes”. No mundo, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que quase 10% da população global tem diferentes deficiências. Envolverde/IPS