Em protesto contra votação, povos indígenas trancam 14 rodovias em 12 estados e parlamentares indigenistas deixam sessão da comissão. Relator propôs tramitação semelhante a das Medidas Provisórias para as demarcações indígenas dentro do Congresso
Por Oswaldo Braga de Souza, do ISA –
Dominada pelos ruralistas, a Comissão Especial que analisa a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 aprovou, na noite desta terça-feira (27/10), o parecer do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). De última hora, o parlamentar alterou seu texto, mudando o trâmite das demarcações de Terras Indígenas (TIs) no Congresso.
A PEC e outras propostas apensadas aprovadas conferem ao parlamento a atribuição de dar a última palavra sobre os limites de TIs, Unidades de Conservação e quilombos, além de permitir empreendimentos econômicos dentro de TIs. Agora, o pacote de propostas segue ao plenário da Câmara e, se aprovado, vai ao do Senado. Nos dois plenários, precisa ser aprovado em dois turnos, por dois quintos do total de parlamentares. Na prática, se aprovada pelo Congresso, a PEC deverá paralisar de vez a oficialização dessas áreas protegidas ao submetê-la às disputas internas do Legislativo.
Deputados do PT, PSB, PV, Rede, PSol e PCdoB retiraram-se da votação em protesto. Daí o resultado final: 21 a 0 pela aprovação do texto principal. Todos os dez destaques à matéria – apresentados por esses partidos – foram rejeitados. A reunião da comissão foi tumultuada, com bate boca e troca de acusações entre deputados favoráveis e contrários à PEC.
“Não vimos mais legitimidade nessa comissão. Essa comissão não tem autoridade pra votar essa matéria”, disse o deputado Sarney Filho (PV-MA), antes de deixar a reunião.
De acordo com o relatório aprovado, o governo deixa de realizar as demarcações por decreto e deverá enviá-las ao Congresso, na forma de Projeto de Lei (PL), que terá um rito abreviado, semelhante ao das Medidas Provisórias (MPs). O projeto seria submetido a uma comissão mista de deputados e senadores com prazo de 90 dias para apreciá-lo. Segundo o parecer, caso aprovado, o PL será remetido diretamente à sanção presidencial; se rejeitado, deve passar pelos plenários da Câmara e do Senado num prazo de 60 dias, sob pena de trancar a pauta.
Serraglio alega que a definição de prazos busca impedir que a tramitação das demarcações arraste-se indefinidamente. Tentando obter apoio do movimento indígena, o deputado prevê, em seu parecer, a reserva de uma vaga no parlamento para um representante indígena. Ele também retirou de seu relatório o dispositivo que previa a criação de uma comissão paritária para solucionar os conflitos envolvendo produtores rurais e índios.
“As novas alterações promovidas pelo relator em nada alteram as evidentes inconstitucionalidades presentes na PEC 215, visto que ela continua retirando direitos fundamentais dos povos indígenas, comunidades quilombolas e da sociedade como um todo, além de violar o princípio da separação de poderes ”, afirma Mauricio Guetta, advogado do ISA.
As mudanças foram introduzidas no parecer após uma reunião de parlamentares com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), João Pedro Gonçalves da Costa, na manhã de ontem. Cardozo teria feito um apelo pelo adiamento da votação temendo a radicalização dos conflitos de terras.
Somente ontem, 14 rodovias, em 12 estados, foram trancadas por comunidades indígenas em protesto contra a PEC 215. Um grupo de cerca de 30 indígenas, impedido de entrar no plenário onde ocorreu a votação, manifestou-se no corredor de comissões da Câmara. Houve início de confusão com a segurança da Câmara. A mobilização também ocorreu nas redes sociais e a rejeição à PEC foi um dos cinco tópicos mais comentados no Twitter.
“A PEC 215 representa o genocídio dos povos indígenas do Brasil. Ela retira o direito dos povos indígenas aos nossos territórios”, advertiu Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Com a transferência do processo para o Congresso, nunca mais irão demarcar Terras Indígenas no Brasil”, concluiu.
Acirramento de conflitos
Antes de deixarem a sessão, parlamentares indigenistas usaram todo tipo de instrumento regimental para tentar adiar a votação. Eles argumentaram que as mudanças propostas por Serraglio de última hora precisariam ser discutidas com calma. O relator alegou que elas dizem respeito apenas aos procedimentos de tramitação das demarcações do Congresso.
“Não venham dizer que faltou tempo. O governo e o Ministério da Justiça não apresentaram nenhuma alternativa ao parecer em dez meses de discussão”, respondeu Nílson Leitão (PSDB-MT), presidente da Comissão Especial. Leitão é investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por supostamente incitar a invasão da TI Marãiwatsédé (MT) (saiba mais).
Os deputados contrários à PEC insistiram que ela é inconstitucional e alertaram que sua aprovação deverá acirrar os conflitos de terras no campo. Eles apelidaram-na de “PEC da morte”.
“Na prática, estão rasgando os direitos dos índios”, denunciou o deputado Alessandro Molon (Rede-RJ). “A sinalização de aprovar a proposta é uma ameaça, uma afronta, uma declaração de guerra para os índios. O Congresso deve lutar para encontrar uma saída dialogada, para acalmar os ânimos”, alertou.
“A PEC 215 quebra o contrato social estabelecido pela Constituição de 1988”, afirmou Nilto Tatto (PT-SP). Como organizações indígenas e indigenistas vêm defendendo, Tatto insistiu que a solução para pacificar os conflitos entre índios e produtores rurais é a aprovação de outra PEC, a 132, que prevê a indenização de detentores de títulos de terra obtidos de boa fé e incidentes sobre TIs. Hoje, a Constituição determina apenas o pagamento das benfeitorias de produtores rurais que estejam nessas áreas. O relatório de Serraglio prevê a indenização, mas para áreas demarcadas a partir de 1993 e apenas em dinheiro vivo, o que deve inviabilizar a proposta na prática.
Segundo estudo do ISA, PEC 215 impactaria diretamente os processos de demarcação de 228 TIs ainda não homologados, os quais devem ser paralisados. Essas terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas. Devem ser afetadas ainda 144 TIs cujos processos de demarcação estão sendo questionados judicialmente e 35 em processo de revisão de limites. Outro aspecto relevante é a abertura das TIs para empreendimentos de alto impacto socioambiental, como estradas e hidrelétricas – o que é proibido na atualidade e pode afetar todas as 698 TIs do país (saiba mais).
CPI da Funai
Outro ofensiva dos ruralistas contra os direitos dos povos indígenas também deverá ser oficializada nos próximos dias. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra a Funai deverá ser instalada. Para isso, bastará que os partidos indiquem nomes para o colegiado. O objetivo manifesto é desgastar ao máximo o órgão indigenista e o governo para pressionar pela mudança do decreto e da portaria do Ministério da Justiça que regulam os procedimentos demarcatórios. (ISA/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Instituto Socioambiental.