ODS 6

Programa Cisternas aposta em soluções comunitárias no Tapajós

Governo expande o programa que transforma cisternas em redes hidráulicas, energia solar e banheiros — tudo construído junto com as comunidades.

Lilian Rahal, Secretária Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional fala ao lado de Júlio Barbosa, Presidente do Conselho Nacional de Populações Extrativistas e de Caetano Scannavino, Coordenador do Projeto Saúde e Alegria
Lilian Rahal, Secretária Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional fala ao lado de Júlio Barbosa, Presidente do Conselho Nacional de Populações Extrativistas e de Caetano Scannavino, Coordenador do Projeto Saúde e Alegria

por Patrícia Kalil –

Esta semana, representantes do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) estiveram em Alter do Chão, distrito turístico de Santarém, para anunciar a expansão do Programa Cisternas para a Amazônia. À primeira vista, pode parecer estranho: a região mais rica em águas do país precisa de um programa para captar e armazenar água da chuva?

Mas o Cisternas da Amazônia não replica apenas a tecnologia social que nasceu no semiárido nordestino. Aqui, o programa assume um novo papel: atuar ao lado de organizações locais, gestores públicos e comunidades como ferramenta estratégica para ampliar o acesso ao saneamento básico. Esta é uma condição que impacta diretamente a saúde, a alimentação e a justiça social. Em vez de contratar uma empreiteira externa para construir as obras, o programa aposta no fortalecimento das associações comunitárias, que constroem junto, gerem o sistema e garantem seu funcionamento.

“Não é só captação de água de chuva. Aqui estamos falando também de sistemas coletivos de abastecimento, rede hidráulica, energia solar, torneira na casa das famílias, banheiros com privada e chuveiro — tudo adaptado à realidade da Amazônia.” – destaca Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria.

O mapa da abundância e a realidade da exclusão

Doxo vem do grego (δόξα, lido dóxa) e significa opinião, visão ou parecer. Ortodoxo seria, literalmente, a “opinião correta”. Já paradoxo (entenda: Pará-doxo) é aquilo que contraria a opinião comum. Como faltar água tratada para uma população que vive cercada por rios (inclusive rios voadores) e sobre o maior aquífero do planeta? Estamos aqui, mergulhados no paradoxo.


Fonte: Agência Nacional das Águas (ANA) | Mapas das Regiões Hidrográficas

Segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), a bacia amazônica ocupa 6 milhões de km², abrangendo sete países, com 81% de toda a água superficial disponível no Brasil. Só no território brasileiro, são 3,87 milhões de km², cobrindo 45% do país e alcançando 313 municípios, incluindo Santarém.

Mas essa abundância não se traduz em acesso à água segura. Longe dos centros de poder, a região Norte sofre negligência histórica. Enquanto o Sudeste e o Centro-Oeste receberam investimentos massivos, aqui prevaleceu a lógica das sobras que foram aplicadas, em sua maioria, para viabilizar hidrelétricas, mineração e exportação de commodities, sem beneficiar a população local. O resultado? Infraestrutura básica como saneamento segue ausente para milhões.

Em 2022, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quase 4 milhões de pessoas no Pará viviam sem acesso à água tratada. Em Santarém, 51,5% da população não possui água encanada. Mesmo na cidade, o abastecimento formal chega a apenas 66% dos moradores — enquanto na zona rural praticamente inexiste.

Impacto da falta de saneamento em indicadores de saúde e segurança alimentar

A precariedade no acesso à água limpa reflete diretamente na saúde pública. É um ciclo perverso que mantém altos os índices de doenças de veiculação hídrica, agrava a desnutrição infantil e contribui para mortes evitáveis de mães e crianças. No coração da Amazônia, instala-se uma crise sanitária invisibilizada. 

Entre 2019 e 2023, todas as regiões de saúde do Pará registraram aumento da mortalidade geral. A região do Tapajós destacou-se negativamente, com alta de 8,6% no período. A mortalidade materna segue crítica: em 2023, o estado registrou 65,8 mortes por 100 mil nascidos vivos (taxa superior à média nacional, 52,2). Embora o Pará tenha conseguido reduzir o indicador em 24,8% desde 2019, a marca continua alta, sobretudo nas áreas mais isoladas. No caso da mortalidade infantil, a estagnação é evidente: o Pará passou de 15,1 óbitos por mil nascidos vivos em 2019 para 15,0 em 2023 (enquanto o Brasil registra média inferior, oscilando entre 12,4 e 12,6).

Seguindo a lógica de que falta de água tratada afeta a saúde, também precisamos considerar que falta de água limpa afeta a alimentação. O Pará figura entre os estados com os piores indicadores de segurança alimentar do Brasil. Em 2023, mais de 6 em cada 10 famílias paraenses enfrentavam algum grau de insegurança alimentar. Em Santarém, município com forte presença rural, ribeirinha e de povos tradicionais, a insegurança alimentar atinge proporções alarmantes (e possivelmente superiores à média estadual de 67,6% identificada pela Rede PENSSAN entre 2021–2022). 

O Programa Cisternas como política pública 

É nesse cenário que o Programa Cisternas chega ao Tapajós, não como obra de engenharia, mas como construção política e social. Criado no semiárido, o Cisternas transformou-se em política pública federal em 2003, após mobilização social. Na Amazônia, o programa incorpora saberes locais, tecnologias sociais desenvolvidas por comunidades extrativistas do Médio Juruá, e adapta soluções às realidades ribeirinhas.

O Projeto Saúde & Alegria (PSA) atua como articulador técnico e institucional na região do Tapajós. Mas a execução é feita em rede: associações comunitárias, cooperativas, organizações indígenas, como Tapajoara, CITA, TAPA, além de dezenas de comunidades, são protagonistas no processo.


Sistema Pluvial Multiuso Comunitário, implementado no território por meio do Programa Cisternas na Aldeia Pajurá na Resex Tapajós-Arapiuns.

Mais do que estruturas físicas, o programa constrói autonomia. Como resume Caetano Scannavino, coordenador do PSA: “Quando a comunidade constrói junto, sente que aquilo é dela. E quando sente que é dela, cuida”.

Um marco histórico

A visita do MDS a Alter do Chão não foi apenas mais um anúncio. Foi histórica: pela primeira vez em décadas, o Programa Cisternas realizou um evento oficial dentro da Amazônia. Um marco simbólico  justo no ano da COP em que o governo federal volta seu olhar para uma região onde o acesso à água potável e ao saneamento básico ainda é um desafio cotidiano.

Saiba mais:

SAÚDE & ALEGRIA. Política pública de acesso à água é discutida em seminário nacional em Santarém, PA. Projeto Saúde & Alegria, 18 jul. 2025: https://saudeealegria.org.br/redemocoronga/politica-publica-de-acesso-a-agua-e-discutida-em-seminario-nacional-em-santarem-pa/

GOVERNO FEDERAL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Água para colher futuro : 20 anos do Programa Cisternas [manuscrito eletrônico]. Brasília: MDS, s.d. (sem data). https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/acesso-a-alimentos-e-a-agua/programa-cisternas/cartilhas/livro_agua_para_colher_futuro_20_anos_do_programa_cisternas.pdf 

SANTAREM – Instituto Água e Saneamento: https://www.aguaesaneamento.org.br/municipios-e-saneamento/pa/Santarem

REDE Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN). 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Brasília: Rede PENSSAN, 2022: https://olheparaafome.com.br/#inquerito 

GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ. Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA). Boletim da Saúde 2025. Belém: FAPESPA, 2025: https://fapespa.pa.gov.br/

AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS – ANA. Mapas das Regiões Hidrográficas – Amazônica [manuscrito eletrônico]. Brasília: ANA: https://www.gov.br/ana/pt-br/todos-os-documentos-do-portal/documentos-spr/mapas-regioes-hidrograficas/amazonica-para-site-ana-a0.pdf