Por Gabriel Brito*, da Redação do Correio da Cidadania –
Cientista renomado e com passagem por diversos órgãos de meio ambiente, Carlos Nobre deu entrevista ao Correio da Cidadania para falar dos riscos de aparecimento de um novo patógeno a partir da pressão humana sobre a floresta amazônica. Na realidade, esclarece que estamos no chamado “século das zoonoses”, uma vez que novos vírus, bactérias ou protozoários são descobertos em média a cada quatro meses. A seu ver, o Brasil não tem alternativa de prazo que não passe pela mudança de modelo econômico e sua relação com a floresta.
“Já há suficiente evidência para se concluir que a floresta em pé apresenta um potencial econômico real e muito superior às práticas de desmatamento. Para isso, esta iniciativa procura implementar o projeto Amazônia 4.0, que é trazer modernas tecnologias da Quarta Revolução Industrial para promover bioindustrialização na própria Amazônia dos produtos da floresta, para agregação de valor às cadeias da biodiversidade e geração de inclusão social, melhores empregos e renda”, propõe.
O professor, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), apresenta seu conceito de “terceira via amazônica”, que daria condições de o Brasil se tornar uma “Potência Ambiental da Sóciobiodiversidade”. Além de valorizar o modo de vida de povos locais, tal mudança de paradigma poderia frear o processo que considera quase irreversível de savanização de grandes partes do território.
“Estamos muito próximos de um ponto de não retorno de savanização da maior parte da floresta tropical da Amazônia. A estação seca está se tornando mais longa em grande extensão do sul da Amazônia e mostra a iminência de que o novo e perturbado clima — mudança causada pela interação sinergística do aquecimento global, dos desmatamentos e do aumento da vulnerabilidade da floresta ao fogo – está quase se tornando o clima típico das savanas tropicais – nosso cerrado do Brasil Central – com longa estação seca”, advertiu.
A entrevista completa com Carlos Nobre pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Recentemente, o senhor afirmou que “não ter surgido uma epidemia massiva na região da floresta até hoje é pura sorte. Os fatores de risco estão todos lá”. Como as pessoas devem compreender essa possibilidade?
Carlos Nobre: A grande maioria das epidemias e pandemias tem como origem as zoonoses, quando um potencial patógeno para o corpo humano migra de um hospedeiro — inseto, roedores, morcegos, aves, gado, suínos, primatas etc. Este espalhamento de patógenos – vírus, bactérias, protozoários, parasitas – acontece quando o equilíbrio ecológico de ecossistemas é perturbado, como no caso das pandemias de Ebola, HIV, SARS, MARS, COVID-19, Zika, Dengue, peste suína, e muitas outras.
O espalhamento do patógeno para humanos está muito associado a pressões humanas sobre os ecossistemas – por exemplo, na SARS de 2002/2003, esteve associado à caça de morcegos de regiões da China e o primeiro coronavírus a tornar-se pandêmico migrou para humanos provavelmente em mercados de carne de animais selvagens. Todas estas perturbações no equilíbrio ecológico estão presentes na Amazônia com o modo de desenvolvimento adotado desde os anos de 1970: madeireiros, desmatadores, grileiros de terras, aqueles que colocam fogo.
Estas pessoas circulam de dentro da floresta perturbada para áreas urbanas e periurbanas, tornando-se potenciais transmissoras dos patógenos, principalmente quando a transmissão ocorre diretamente entre humanos. Com o crescente impacto das atividades humanas sobre os ecossistemas naturais, a perturbação sobre os micro-organismos tem causado um aumento da frequência de epidemias ao redor do mundo – praticamente uma nova a cada 3 a 4 meses -, com algumas atingindo o nível de pandemia como a COVID-19.
Correio da Cidadania: Não é difícil pensar no bioma amazônico brasileiro como potencial fonte de origem de um novo patógeno.
Carlos Nobre: A ciência ainda não conseguiu elucidar porque uma grande pandemia não tenha se originado na Amazônia, região que hospeda centenas de milhares ou talvez milhões de espécies de micro-organismos. Uma espécie de hantavírus presente em espécies de morcegos do bioma Amazônia tem o potencial de chegar em humanos gerando a hantavirose. Já há evidências destes morcegos em áreas desmatadas no sul da Amazônia e chegando muito próximos a assentamentos humanos.
Em resumo, os riscos estão todos presentes na Amazônia para uma massiva epidemia, que pode tornar-se pandemia. Não podemos contar com a sorte e é imperativo zerar o desmatamento, queimadas, degradação florestal e buscar restabelecer o equilíbrio ecológico. Um estudo recente mostrou que o custo de proteger todas as florestas tropicais do planeta – possíveis fontes de quase permanentes novas epidemias e pandemias, se continuarem a ser destruídas e perturbadas – é uma pequena fração do custo econômico que a COVID-19 já causou à economia mundial.
Este é o caminho sensato, que faz sentido econômico, sustentável e é justo para toda a humanidade e para todas as espécies vivas do planeta.
Correio da Cidadania: O senhor também desenvolveu o conceito da “terceira via amazônica”. O que seria isso e que tipo de debates a pandemia e a relação que temos estabelecido com a floresta e o meio ambiente deveria gerar em nossa sociedade?
Carlos Nobre: O conceito que estamos desenvolvendo na Terceira Via Amazônia é buscar alternativas para o desenvolvimento de uma nova bioeconomia de floresta em pé. O modo desenvolvimentista de uso intensivo e extrativista dos recursos naturais da Amazônia — agropecuária, mineração, energia — iniciado de forma acelerada há 50 anos não enxerga real valor econômico na floresta e na sua imensa biodiversidade escondida nos ecossistemas terrestres e aquáticos.
Porém, já há suficiente evidência para se concluir que a floresta em pé apresenta um potencial econômico real e muito superior às práticas de desmatamento. Para isso, esta iniciativa procura implementar o projeto Amazônia 4.0, que é trazer modernas tecnologias da Quarta Revolução Industrial para promover bioindustrialização na própria Amazônia dos produtos da floresta, para agregação de valor às cadeias da biodiversidade e geração de inclusão social, melhores empregos e renda.
Hoje, o açaí já traz cerca de 1 bilhão de dólares para a economia da Amazônia e beneficia cerca de 300 mil pessoas. Mas os níveis de agregação de valor via industrialização são baixos. Há centenas e até milhares de produtos da floresta com potencial econômico. Há que se mudar a visão que herdamos dos colonizadores europeus há 500 anos e tornarmos o Brasil a primeira “Potência Ambiental da Sociobiodiversidade”, com uma inovadora bioeconomina de floresta em pé e rios fluindo.
Correio da Cidadania: Ainda sobre a Amazônia, como avalia os atuais níveis de desmatamento e a atuação do ministério do Meio Ambiente? A que se devem os atuais acontecimentos na área?
Carlos Nobre: Há uma grande preocupação entre todos os brasileiros e que também se tornou uma preocupação global sobre o futuro da Amazônia. Estamos muito próximos de um ponto de não retorno de savanização da maior parte da floresta tropical da Amazônia. A estação seca está se tornando mais longa em grande extensão do sul da Amazônia e mostra a iminência de que o novo e perturbado clima — mudança causada pela interação sinergística do aquecimento global, dos desmatamentos e do aumento da vulnerabilidade da floresta ao fogo – está quase se tornando o clima típico das savanas tropicais – nosso cerrado do Brasil Central – com longa estação seca.
O aumento das taxas de desmatamento, fogo e degradação florestal nos últimos anos exacerba a preocupação sobre o risco iminente de savanização da floresta. É preciso reverter o discurso de muitos políticos tanto da Amazônia como de Brasília de buscar um modelo ultrapassado de desenvolvimentismo a qualquer preço que não vê qualquer valor econômico, estético ou cultura na floresta em pé.
Seguir nesta direção já mostra que não é somente um suicídio ambiental, mas também econômico, em função da reação global e de importantes setores econômicos – como os fundos de investimento – contra a continuidade da destruição da floresta e de seus povos originários. Esta reação começa a ganhar força também no Brasil com setores econômicos se manifestando publicamente contra tal modelo, defendendo zerar o desmatamento e restaurar a floresta.
*Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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