por Dal Marcondes* –  

As cidades que existem além das portas e janelas de nossas casas são o reflexo do que pensamos e o resultado de nossas ações em relação a elas. A cidade reflete a violência de seus moradores, a educação de seus cidadãos, a gestão de seus políticos e a qualidade de vida, boa ou má, para a qual todos contribuem.

Na maioria das cidades, os grandes problemas têm soluções relativamente simples. Ações e mudanças que não são necessariamente estruturais, mas que apresentam o potencial de transformar a qualidade de vida dos habitantes. Boa parte dessas ações precisa apenas de mudanças de comportamento e da forma de ver e entender os espaços públicos.

Mobilidade, educação, saúde, saneamento e habitação estão entre os principais fatores que definem a qualidade de vida em uma cidade. No caso brasileiro, a maioria das capitais e grandes cidades, as elites e os gestores fizeram opções por mobilidade com base em automóveis, educação e saúde privadas, poucos e equivocados investimentos em saneamento, além de projetos habitacionais que emparedam as classes altas em condomínios e empurram as classes mais pobres para periferias e morros onde a presença do Estado é quase sempre muito deficitária.

Nas cidades que estão crescendo, o modelo é quase sempre o mesmo. Enquanto ainda podem não são tomadas as decisões para a mudança de modelo. Pelo contrário, o conceito corrente de “desenvolvimento” é imitar o modelo degradante de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, que estão entre as cidades com mais problemas sociais do mundo. O Brasil tem pouco mais de 5.500 municípios e precisa estabelecer metas claras de qualidade de vida para cada um deles, com indicadores econômicos e sociais que indiquem prioridades com foco em políticas públicas que garantam mobilidade e acesso a serviços públicos de forma universal.

As cidades brasileiras precisam privilegiar as vocações de suas regiões e de seus cidadãos e não se transformarem em cópias mal acabadas de metrópoles degradadas. É preciso que se compreenda que a construção de uma sociedade sustentável e uma economia mais justa passa por um esforço consciente em direção a melhoria de indicadores de qualidade de vida. Há muitos exemplos do que deve ser banido das relações sociais.

Por mais que os governos realizem investimentos para ampliar serviços de saúde e escolas, a falta de participação da sociedade nas soluções faz com que as ações sejam sempre insuficientes. A qualidade do ensino nas escolas públicas empaca na ausência da família na busca de solução para a conturbada convivência entre alunos e professores e abre espaço para conflitos que não deveriam ocupar crianças e adolescentes. A incapacidade de reduzir a violência no trânsito e em outras esferas das relações humanas ampliam a deformação dos serviços de saúde, que precisam ser superdimensionados para tratar de epidemias que precisam apenas de educação para serem debeladas.

No quesito saneamento e lixo os equívocos continuam. As maiores metrópoles ainda não conseguiram estabelecer padrões de coleta que garantam a reciclagem em escala industrial e as cidades menores estão, em grande maioria, fazendo apenas a coleta do lixo, sem destinação adequada. A relação das pessoas com o lixo é mágica. Colocam-se os resíduos em um saquinho na calçada e “puf”, ele desaparece. Praticamente ninguém sabe para onde ele vai. Vale a máxima: o que os olhos não veem…

Na maior parte das cidades da Europa, os moradores têm de sair de casa e depositar o lixo em contêineres preparados para receber as diversas classes de resíduos, que tem uma destinação final adequada. Na maior parte das cidades brasileira, o modelo de coleta replica a relação mágica, que faz o saquinho sumir da calçada. Comprometer mais as pessoas na solução dos problemas pode ajudar a construir uma relação mais sustentável da sociedade com seus espaços públicos.

A participação das pessoas na busca de soluções, em todos os aspectos da vida nas cidades, é uma forma de melhorar a qualidade dos serviços públicos. Colaborar com atividades nas escolas, se organizar em associações que busquem soluções para questões da vida em sociedade, cobrar das autoridades o exercício cidadão das prerrogativas do Estado em relação à segurança e Justiça são formas de transformar as cidades, mesmo aquelas que já estão avançadas em direção ao modelo de cidadania egocêntrica que se estabeleceu nas metrópoles.

A transformação também deve se dar nas escolhas de incentivos que as cidades podem oferecer para seu desenvolvimento econômico. Buscar fórmulas que incentivem atividades de baixo impacto ambiental e de benefícios sociais consistentes, tais como incentivos para a implantação de novos negócios, oferta de infraestrutura direcionada para a sustentabilidade, com forte aporte de acesso a tecnologias da informação, internet e outros meios de comunicação on line, formar profissionais em áreas de inovação e manter alto nível em projetos educacionais são caminhos seguros para o desenvolvimento inclusivo e capaz de elevar os indicadores de qualidade de vida das cidades.

No entanto, por mais que o poder público tenha uma atuação diferenciada, que busque incentivar caminhos sustentáveis, a participação das pessoas, da sociedade e das organizações é fundamental.
É preciso que a sociedade local entenda as necessidades de sua comunidade e participe na escolha das soluções. Muitas vezes, o gestor público vê e interpreta um problema ou uma demanda social de forma burocrática ou tecnocrática e busca soluções no caderno tradicional que preconiza grandes obras e manutenção de modelos que já estão fora da agenda da sociedade. É o caso de soluções de mobilidade que preveem viadutos, grandes avenidas e pontes, enquanto a cidade talvez apenas precise redesenhar os trajetos de seus transportes públicos para dar mais agilidade e mobilidade a ônibus e bicicletas.

Apesar de existirem graves problemas nas metrópoles brasileiras, a grande maioria das cidades são ainda pequenas e fáceis de se repensarem em termos de modelos. É preciso apenas que a inovação, tão necessária para que o futuro seja um bom lugar para se viver, seja também utilizada na gestão pública. A participação social é estruturante, não apenas na gestão das cidades, mas para a definição de caminhos para a criação de oportunidades de trabalho, de empreendedorismo e de renda.

A redefinição dos espaços públicos e das políticas públicas devem ser parte de um processo de reconstrução da cidadania como forma de garantir qualidade de vida e excelência em gestão. Isso é possível apenas de forma participativa, na qual as famílias frequentam as escolas dos filhos, os cidadão participam dos conselhos municipais de meio ambiente, de saúde, da infância etc. Onde a cidadania não se restringe ao processo eleitoral e a paisagem fora de nossas janelas forma parte de nossas vidas.

* Dal Marcondes é jornalista especializado em jornalismo econômico, diretor e editor responsável da Agência Envolverde, presidente do Instituto Envolverde, especialista em economia ambiental e mestre em modelagem de negócios digitais pela ESPM/SP.

 

 

**Publicado originalmente no site “Tecnologia Social e Desenvolvimento Sustentável – Contribuições da RTS para a formulação de uma política de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação”