Nos últimos 40 anos, a China passou por um processo de rápida urbanização. E, nos anos 1980, o país antes conhecido como “Reino da Bicicleta” passou por reformas econômicas que prenunciaram a era do transporte motorizado.
Hoje, os chineses se movem em direção ao transporte moderno e sustentável: você pode usar seu celular para destravar uma bicicleta compartilhada, pedalar por uma ciclovia dedicada até o terminal de ônibus mais próximo, estacionar a bicicleta e tomar a condução até seu próximo destino. Essas viagens já são corriqueiras ali.
A China é a maior nação em desenvolvimento do mundo e, por isso, seus experimentos de grande escala nas áreas de transporte são de enorme valor para outros grandes países em desenvolvimento.
Soluções de transporte sustentável
Trem urbano e corredor de ônibus (BRT): resposta à rápida motorização
Em 2004, a China iniciou a construção em grande escala de trens urbanos e corredores de ônibus. No terceiro trimestre de 2017, 29 cidades chinesas já tinham algum tipo de trem urbano – categoria que inclui metrôs, veículos leves sobre trilhos (VLT), monotrilhos e sistemas automatizados (APMs, na sigla em inglês) – com 118 linhas que percorrem 3.862 quilômetros e transportam 17,68 bilhões de passageiros por ano. Os sistemas de trens urbanos de Shanghai de Pequim são mais extensos que os de Londres e mais movimentados que os de Nova York e Paris. Em algumas cidades da China, os trens urbanos são responsáveis por metade de todas as viagens feitas em transporte público.
O transporte sobre trilhos, no entanto, tem alto custo. O Banco Mundial recomenda que as nações em desenvolvimento adotem o modelo de corredores de ônibus (BRT, na sigla em inglês), com capacidade média. A elaboração do sistema de BRT de Pequim, lançado em 2005, se baseou em experiências latino-americanas, como os corredores de ônibus do Brasil e as estações fechadas, com serviço rápido e frequente, pagamento antes do embarque e alta qualidade de informações para os passageiros. No início de 2018, sistemas de BRT já estavam funcionando em 32 cidades chinesas. Em ao menos outras dez, estavam em estágio de planejamento, projeto ou construção.
A adoção dos sistemas de BRT latino-americanos pela China passou por alguns problemas em sua integração com as rotas de ônibus já existentes. Os projetos tiveram de ser ajustados às necessidades estruturais das cidades chinesas. A China já tinha linhas de ônibus que usavam os corredores de BRT, o que significa que a maioria das rotas não teve o tempo de viagem encurtado.
Em 2009, a província de Guangzhou implementou um sistema de “corredor dedicado e rotas flexíveis”, permitindo tanto o uso do corredor por linhas de ônibus de fora do sistema BRT quanto a operação de linhas BRT fora das pistas dedicadas. Isso garantiu um melhor aproveitamento dos corredores de ônibus.
Uma revolução urbana com foco nas pessoas
Em resposta aos danos que o transporte motorizado trouxe às cidades, à qualidade do ar e à saúde, as cidades chinesas começaram a inovar nos projetos de vias públicas – redesenhando espaços urbanos com foco nas interações entre as pessoas, e não no transporte motorizado.
Em 2016, a cidade de Shanghai divulgou o Guia de Projeto de Vias de Shanghai, publicação seminal que sinalizou uma mudança nos valores centrais do desenvolvimento urbano: saem os carros, entram as pessoas. O guia destacava os pedestres e ciclistas, anteriormente deixados de lado, e previa a redução adequada do espaço para veículos. O objetivo foi priorizar formas mais lentas de transporte, dando espaço para pedestres e garantindo o livre fluxo de bicicletas de forma a proporcionar um ambiente mais agradável aos usuários de formas mais ativas de transporte.
Em Guangzhou, a inovação nos padrões técnicos do planejamento viário evolui respaldada pela prática, e, em 2017, foi iniciado um grande projeto de melhorias na cidade.
Além de Shanghai e Guangzhou, dezenas de outras cidades, entre elas Wuhan e Nanjing, estão desenvolvendo seus próprios manuais de planejamento viário urbano. Cada vez mais cidades se juntando a este movimento de revolução urbana.
A bicicleta elétrica e os sistemas de compartilhamento de bicicletas
Como a China continua a se urbanizar, torna-se necessário disponibilizar novas formas de deslocamento para a crescente população urbana. As bicicletas elétricas têm se espalhado por todo o país, bem como os sistemas de compartilhamento de bicicletas, lançados por marcas como Ofo e Mobike. São opções que oferecem velocidade e conveniência.
A avalanche de bicicletas, no entanto, tem sido acusada de obstruir calçadas, causando transtornos. Em 2014, a China tinha mais de 200 milhões de bicicletas elétricas, usadas como a principal forma de transporte por inúmeras famílias. Até maio de 2015, mais de 10 milhões de bicicletas haviam sido disponibilizadas nas cidades chinesas pelos sistemas de compartilhamento, com mais de 100 milhões de usuários e mais de 1 bilhão de viagens registradas. Isso teria economizado grandes volumes de emissões de carbono, segundo governos e as empresas do setor.
As bicicletas elétricas não produzem poluentes, ocupam pouco espaço nas ruas e são adequadas a viagens curtas e médias. São mais rápidas que as bicicletas tradicionais, exigem menor esforço físico e são razoavelmente baratas, o que as torna uma excelente opção em cidades com sistemas de transporte público pouco desenvolvidos. Já as bicicletas compartilhadas podem ajudar a completar a “última milha” (distância entre a estação ou parada de transporte público e o destino final do usuário) em lugares com transporte público insuficiente, substituindo as corridas curtas de carro. A possibilidade de alugá-las e estacioná-las onde você quiser tem incentivado seu uso nas cidades.
De acordo com dados da Mobike, empresa de compartilhamento de bicicletas, 81% das bicicletas compartilhadas de Pequim são utilizadas no entorno de estações ou de paradas de ônibus. Em Shanghai, esse número sobe para 90%. Um relatório sobre os transportes no primeiro trimestre de 2017, elaborado pela empresa de mapeamento AutoNavi, revelou que o número de viagens de carro de cinco quilômetros ou menos vem caindo desde que as bicicletas compartilhadas se tornaram disponíveis. Tanto Shanghai quanto Pequim registraram quedas de 5% nessas viagens de carro.
Essas formas de transporte em rápido desenvolvimento apresentam desafios para os planejadores urbanos. As bicicletas elétricas são relativamente rápidas, seus números estão aumentando de forma acelerada e, com isso, elas se tornaram grande causadoras de acidentes de trânsito. Entre 2013 e 2017, foram registrados 56.200 acidentes causados por bicicletas elétricas e que resultaram em mortes ou ferimentos na China, totalizando 8.431 vítimas fatais e 63.500 feridos. Outro problema associado às bicicletas elétricas é o estacionamento em locais inconvenientes, causado pela falta de infraestrutura e pela histórica falta de legislação favorecendo o uso das bicicletas.
Por isso, essas novas formas de transporte entram em frequente conflito com administradores municipais, ainda que elas estejam acumulando experiência valiosa ao desenhar políticas para o uso desses equipamentos. Por exemplo: a China inicialmente limitou a velocidade e o peso das bicicletas elétricas, medida que desagradou seus usuários. Alguns governos locais chegaram a banir seu uso.
Essas tentativas levaram ao “modelo de Nanning”, da cidade de mesmo nome na província de Guangxi, no sul do país, próximo à fronteira com o Vietnã. Lá, as proibições foram abandonadas em favor da otimização da sinalização, com melhorias na educação sobre segurança no trânsito. Isso permitiu a coexistência das bicicletas elétricas com os demais meios de transporte. Da mesma forma, o governo central da China publicou normas para orientar a rápida adesão aos programas de compartilhamento de bicicletas, em uma tentativa de direcionar – e não impedir – seu avanço. Algumas cidades também começaram processo de melhoria e ampliação da infraestrutura relacionada a elas, como ciclovias, para se tornarem mais “amigáveis aos ciclistas.”
Lições da experiência chinesa
Como um dos maiores países em desenvolvimento, a China tem lições valiosas a dar a países em estágios similares de desenvolvimento quanto a oportunidades e desafios da transição para meios sustentáveis de transporte urbano:
- O transporte público de boa qualidade é a base da mobilidade sustentável
Para permitir o crescimento da mobilidade sustentável, ou de baixo carbono, o transporte público precisa ser competitivo frente aos carros: rápido, conveniente e confortável. Transporte público de boa qualidade não significa apenas mais atendimento, mas também serviço de qualidade para um número maior de pessoas. Essa tem sido uma premissa importante para algumas cidades chinesas que tentam restringir o crescimento do uso de automóveis a partir do transporte sustentável.
O transporte público de alta capacidade (metrôs, trens urbanos e BRT) em São Paulo (Brasil), por exemplo, alcança apenas 25% da população. Em Pequim, chega a 60%, substituindo com êxito algumas formas de transporte privado. Desde 2010, a proporção de viagens em carros privados e táxis tem caído constantemente.
Fonte: Relatório Anual 2016 sobre Desenvolvimento dos Transportes em Pequim
Assim como a China, o Brasil, outro dos maiores países em desenvolvimento do mundo, tem tido enorme sucesso na construção de transporte público de alta capacidade e velocidade, principalmente os sistemas de BRT. O país conta atualmente com 752 quilômetros de linhas de BRT, que transportam uma média de 107,5 milhões de passageiros por dia, mais do que qualquer outro sistema do mesmo tipo no mundo. Considerando que o transporte público rápido ainda alcança um número limitado de pessoas, as cidades brasileiras poderiam se apoiar no modelo de “corredor dedicado e rotas flexíveis” de Guangzhou para aumentar sua capacidade de atendimento.
- É essencial desenvolver um sistema integrado de transporte multimodal
A integração total entre o sistema de ciclovias e o transporte público promove desenvolvimento inclusivo e coordenado, é mais atraente para o público e resolve o problema da “última milha”, a distância entre o ponto de ônibus ou a estação de metrô/trem e o destino final do passageiro.
- A construção das cidades deve ser focada nas pessoas
Após cair na armadilha de transformar as ruas em enormes espaços projetados para carros, as cidades chinesas estão começando a perceber que deveriam ser construídas para criar ambientes agradáveis de convivência. Isso tem gerado uma transição em direção ao design urbano focado nas pessoas.
A experiência das cidades chinesas também demonstra que, se opções de transporte público sustentáveis estiverem disponíveis, os moradores deixarão seus carros em casa. Em Nanning, 45% dos usuários de bicicletas elétricas vêm de domicílios que possuem um automóvel.
Segundo dados de 2015 do Centro de Transportes Sustentáveis, o Brasil tem seis das dez cidades com as maiores taxas de mortes e ferimentos causados por acidentes de trânsito no mundo. Isso aponta que a infraestrutura urbana brasileira não é amigável para pedestres ou ciclistas. A experiência chinesa mostra que esses riscos, compreensivelmente, deixam as pessoas menos dispostas a se deslocarem a pé ou de bicicleta. A construção de cidades focadas nas pessoas melhora a segurança e fomenta entre seus habitantes a preferência por andar ou pedalar, promovendo o transporte sustentável.
- Os transportes devem investir em inovação
Com os avanços na ciência e tecnologia, novas formas de transporte e modais de deslocamento têm aparecido na China, como as bicicletas elétricas com baterias de longa duração e os programas públicos de compartilhamento de bicicletas, que disponibilizam opções de pagamento via sistemas “fintech” (tecnologia financeira). Na China, apesar dos contratempos nessa transição, não há dúvidas de que a inovação tem acelerado a mudança em direção ao transporte sustentável.
(Diálogo Chino/#Envolverde)