Por Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade do ISA –
Uma das lições mais interessantes da jornada de Alice ao outro lado do espelho (Alice através do espelho) acontece em seu encontro com a Rainha Vermelha. É nesse momento que Alice aprende que, naquele mundo, é preciso correr o tempo todo para permanecer no mesmo lugar.
Sob certo aspecto, porém, no nosso mundo também é assim. Tanto que a ideia de que as espécies precisam se transformar o tempo todo para conseguirem continuar existindo foi apelidada de “Hipótese da Rainha Vermelha”. Como Alice, no outro lado do espelho, que correu muito para ficar no mesmo lugar, as espécies precisam se adaptar continuamente a um mundo que se transforma o tempo todo para seguirem por aqui. Agora, porém, a corrida sem fim que a Rainha Vermelha impõe a todos que querem continuar no mesmo lugar, existindo e permanecendo, assume outras colorações.
Organismos como os vírus correm muito e se adaptam facilmente. O coronavírus, responsável pela pandemia nossa de cada dia, mudou, se adaptou e transbordou dos morcegos para os pangolins e desses simpáticos animais, para nós. Essa corrida, contaminada de mutações contínuas é a essência dos vírus: eles se transformam o tempo todo, mudando de ambiente e tornando possível seguir por aqui, seja nos nossos pulmões ou no interior dos morcegos. Nós, mamíferos, temos mais dificuldades nessa corrida. Nossas gerações não se alternam tão rapidamente quanto as dos vírus. Nossas possibilidades de adaptação são mais exíguas e, como resultado, somos participantes vagarosos dessa corrida.
Há, porém, uma diferença ainda mais fundamental — para além da velocidade — no sucesso dessa corrida entre nós e os vírus. A reprodução desses últimos, que na verdade é apenas uma acelerada multiplicação de uma cadeia de RNA (ácido ribonucleico), como no caso dos coronavírus, ou de DNA, dá a oportunidade de que mutações aconteçam rapidamente e se tornem prevalentes — ou não — dependendo de seu sucesso em se adaptar ao ambiente, sempre em transformação. Para que aconteçam mudanças que confiram a nós, humanos, maior êxito, em nossa adaptação ao meio ambiente, é preciso muito mais e principalmente que o material para essas mudanças já exista dentro de nós.
Em seres como os humanos, mutações que se estabelecem e se tornam prevalentes são bem mais raras e as adaptações das populações ao ambiente em transformação se deve à diversidade genética, presente na espécie. É o caso, por exemplo, da resistência a determinadas doenças, que são letais para alguns indivíduos mas não para toda a população. A médio prazo, os sobreviventes se reproduzem e a resistência a doença se espalha pela população.
A ausência dessa diversidade genética já causou inúmeros estragos mundo afora. Desde a grande fome no século 19, na Irlanda, onde as batatas cultivadas eram idênticas e uma doença matou todas elas, conduzindo cerca de um milhão de pessoas à morte por fome e mais um milhão a abandonar o país, até a gripe aviária e a gripe suína, precipitadas pela presença de animais geneticamente semelhantes em regimes cruéis de confinamento. Ou seja, quando não há diversidade genética e não há resistência a uma doença por exemplo, toda a população perecerá. Não há corrida possível e nem é preciso que a Rainha de Copas grite: “cortem-lhe a cabeça”, pois aquela população já está condenada.
No caso dos animais e plantas é essa diversidade genética que oferece alguma possibilidade de adaptação a condições ambientais que se modificam, como na crise climática. Plantas que precisam sobreviver em ambientes com temperaturas, regimes de chuva e umidade diferentes do habitual, só têm chance de continuar viva como espécie se houver indivíduos que consigam sobreviver nessas novas condições e gerem descendentes adaptados.
No caso dos animais, além dessa possibilidade, há a alternativa da migração, em busca de ambientes mais convidativos. Um efeito colateral dessa estratégia, porém, com resultados que podem vir a ser nefastos, inclusive para nós, é quando animais que não tinham contato originalmente se encontram e o transbordamento de vírus de um para o outro pode se dar, gerando novas doenças que podem nos atingir.
Destruição ambiental como gatilho
É o que pode acontecer, por exemplo com os mais de 3,2 mil coronavírus que estão presentes nos morcegos brasileiros. As mudanças climáticas podem colocar esse animais em contato com outros, com os quais eles jamais se encontraram, ampliando a oportunidade da emergência de novas doenças. O desmatamento e a destruição de ambientes também têm esse efeito, forçando os morcegos e outros animais para longe de seus ambientes naturais e potencializando encontros que podem acabar em pandemias globais.
No entanto, não são apenas os morcegos os repositórios de vírus. Animais com o casco fendido como bois, camelos, porcos, lhamas, veados e outros da mesma ordem (Artiodactyla) também abrigam muitos vírus com o potencial zoonótico, ou seja de causar doenças em humanos. A pecuária pode precipitar novas epidemias e na Amazônia, esse potencial cresce significativamente com a combinação entre os vírus presentes nos animais silvestres e os que residem no gado bovino.
Vale lembrar que se acredita que o surto de Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), que ocorreu em 2012, causado também por um coronavírus, teve como origem o camelo. Numa entrevista recente, Christian Drosten, diretor do Instituto de Virologia do Hospital Charité, em Berlim, na Alemanha, chamou atenção que os camelos também são hospedeiros de um outro coronavírus, causador de um resfriado comum, e que o gado bovino hospeda outro coronavírus.
Além disso, outras doenças encontram na destruição ambiental seu gatilho. Os surtos de ebola estão ligados à conversão de áreas de floresta em monoculturas e surgem repetidamente em várias regiões da África. No momento, por exemplo, o Congo enfrenta um novo surto, considerado como uma emergência internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A Amazônia enfrenta seguidamente epidemias de malária e de leishmaniose, doenças cujo vínculo com o desmatamento está bem estabelecido.
Pensar o impossível
Esse tipo de situação que faz com que a corrida imposta pela Rainha Vermelha se torne ainda mais complexa. Ou seja, não basta que tenhamos todos que nos adaptar a um ambiente que naturalmente muda. Nós modificamos o ambiente de tal maneira que talvez não seja suficiente continuar correndo para conseguirmos aqui permanecer. Essas transformações podem gerar um ambiente tão hostil para nossa espécie que nossa diversidade não será suficiente. As consequências podem ser catastróficas e definitivas para nós.
O que parece ser um capricho dos ambientalistas, dos amantes das árvores, dos poetas da natureza, dos protetores dos animais é, na verdade, a melhor aposta que temos para ter um futuro para chamar de nosso. O que parece apenas uma inconseqüência de um governo irresponsável, de um agronegócio imprudente e de grileiros vorazes é, na verdade, uma condenação à morte.
Ainda com os ecos dos gritos de “cortem-lhes a cabeça” da Rainha de Copas, condenação que apenas espelha nossas ações, seguimos Alice em seu encontro com a Rainha Branca que lhe convida a acreditar em coisas impossíveis. Diante da resposta de Alice, de que nada serve fazer isso, a Rainha diz que quando tinha a idade de Alice muitas vezes chegou a acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã. Certamente, não basta acreditar, mas o exercício de pensar nessas coisas impossíveis, dar forma a elas, talvez seja uma forma de ajudá-las e se tornarem possíveis, materializáveis nesse mundo.
Talvez devêssemos seguir os conselhos da Rainha Branca e elaborar uma lista de seis coisas impossíveis que poderiam acontecer e transformar, pelo menos um pouco, o mundo que está por vir, depois da pandemia. Se não for por esperança na mudança, que seja por um imperativo ético.
Imagem de destaque: Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO) invadida por rebanho de gado, em imagem de dezembro de 2017|Gabriel Uchida/Kanindé
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