Sociedade

Boa série na TV ajuda a refletir sobre a cidade que queremos

por Blog da Amelia Gonzalez – 

Um cheiro forte que remonta a coisas úmidas andava me incomodando  sempre que eu abria a porta do apartamento que alugo. Construído sobre uma pedra, o prédio já tem mais de seis décadas, e parece que a tubulação ainda é original. O cheiro aumentou e a causa dele começou a aparecer, fisicamente, na parede da minha sala que é contígua ao banheiro.

Para minha sorte, tenho uma ótima relação com a locadora. Chamei o técnico, quebrou-se a parede, trocou-se piso, e o custo dessa imensa obra vai ser descontado do aluguel. O custo monetizado, quero dizer. Porque ficar sob uma torrente de poeira e barulho durante quase quinze dias custou-me um pouco mais.

Estou contando tudo isso para explicar parte do motivo que me fez estar afastada aqui do blog. Mas estou de volta. Noves fora, ficou um alívio e tanto. O cheiro forte acabou, a mancha de umidade se foi. Pedi para o Sr. Luis, empreiteiro que tocou a obra, botar manta no piso do box e envolvendo o barbará.  Em conversa com meu médico homeopata, ainda por cima fiquei feliz por ter tido a coragem de me submeter ao atravancamento e desconforto. É que a umidade pode ser causa de inúmeros problemas de saúde, dos quais posso ter me livrado… ou não. Estou com uma questão nos olhos que pode ser resultado da umidade, sob investigação.

E, com isso, ainda ganho panos para mangas compridas de reflexão. Andamos tão preocupados com saúde por causa da pandemia que a gente talvez se esqueça de que este é um tema que exige uma visão ampla, integrada. Por isso estou trazendo o assunto saúde num texto que começa falando sobre… moradia.

Lembro-me bem de uma reportagem de dezembro de 2011 feita pela repórter Martha Neiva Moreira para o caderno “Razão Social”, que eu editava no jornal “O Globo”, em que focamos a questão das moradias contíguas, em becos, ruelas, porões na Rocinha e em tantas outras comunidades, e o mal que isso faz à saúde dos moradores. Martha visitou a favela para fazer a reportagem, e voltou de lá impactada.

“A grande quantidade de gente dividindo um pequeno espaço, somada à sujeira, falta de sol nos becos estreitos e umidade nas paredes é receita infalível para a proliferação de várias doenças que têm seu vetor na relação entre adensamento demográfico e falta de infraestrutura sanitária”, escreveu ela. Na época dessa reportagem havia 425 pessoas em tratamento contra a tuberculose e 75 novos casos haviam surgido.

Como nada acontece por acaso, enquanto refletia sobre as manchas de umidade no pequeno apartamento que ocupo, lembrando-me da situação extremamente mais vulnerável que acomete aquelas pessoas, recebi mensagens de duas amigas sobre a série “Cidades Possíveis”, dirigida por Eduardo Goldenstein, que vai estrear no canal Curta! a partir do dia 5. Martha Ferraris, a diretora de produção da série, contou-me, tempos atrás, como ficou emocionada com a proposta de trabalhar no projeto. Anteontem lembrou-me disso, e me convidou para assistir o resultado.

Outra amiga, Katia Carneiro, mandou-me por email três episódios. Um deles, especificamente, tem a ver com a reflexão que estou propondo aqui. “Cidades possíveis” é um processo, que se propõe a dar uma visão sobre como algumas cidades conseguem vencer alguns dos enormes desafios que enfrentamos nas megalópoles. A equipe percorreu o Brasil de Mossoró à Foz de Iguaçu, do Alto Paraíso a Salvador, das grandes metrópoles  como São Paulo, Rio e Belo Horizonte a pequenas cidades como Entre Rios do  Oeste e Piranhas.

 No episódio “Habitação Digna”, Goldenstein mostra como é necessário fazer oposição a um plano habitacional que não contempla a todos.

A urbanista Erminia Maricato, uma das entrevistadas, dá a visão histórica e lembra o grande nó do imbróglio em que nos metemos, nós, a atual civilização que prefere potencialmente viver nos centros urbanos e não no campo. No início do século XX, apenas dez por cento moravam nas cidades aqui no Brasil. Um século depois, já somos 84%, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicíio (Pnad), de 2015.

“Nós praticamente nos urbanizamos no século XX. Vivemos mais de 350 anos como escravos, é muito tempo para a história de um povo e é muito tempo para deixar de ter uma marca fortíssima que temos até hoje.  Até 1850 as terras eram da Coroa e a discussão da apropriação das terras tem uma simbiose com a libertação dos escravos. A elite se apropriou de terras para aceitar a libertação. Essa marca é central na história do Brasil”.

Erminia se pergunta: “O que é prioritário nas nossas cidades?” O mercado residencial brasileiro não chega nem a 50% da população, lembra a urbanista, e a maior parte das habitações é construída pela própria população, sem lei e sem acompanhamento técnico.

Resultado direto dessa ocupação desordenada é a incidência de doenças respiratórias e alergias em crianças de favelas. A reportagem que editei em 2011 mostrou isso. Quatro anos depois, uma equipe de repórter do jornal El País esteve no mesmo local e retratou situação semelhante (https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/politica/1441120198_053979.html). Nada mudou.

Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense, é outro entrevistado de “Cidades Possíveis”, que irá ao ar sempre às 19h. Silveira lembra que o futuro das cidades tem que passar pelo Centro, um lugar importante e que deveria ser prioritário para a construção de novas habitações, já que tem muita oferta de trabalho. Seria, basicamente, uma lição de casa para todos os candidatos que estão tentando ocupar a vaga da prefeitura das cidades a partir de janeiro do ano que vem.

Pensando bem, “Cidades possíveis” bem poderia ser um documentário de cabeceira para os candidatos. Não só porque toca nos temas sensíveis, quanto porque mostra soluções viáveis. A série terá 13 episódios, cada um com um assunto relevante. Vou focar no da Habitação, que me afeta bastante. E vocês já devem estar se perguntando qual a solução que ele aponta para uma situação que nos parece cada vez mais complexa, sobretudo quando caminhamos pelas ruas pandêmicas e vemos a quantidade triste de pessoas que são obrigadas a dormir ao relento porque não têm casa para morar.

Sim, é possível mudar isto. E a solução não passa por “unidades de moradia”, aquelas que são construídas distante de tudo.

A história do edifício Dandara, no Centro de São Paulo, contada por Evaniza Lopes Rodrigues, militante da União Nacional por Moradia Popular, é prova de que as pessoas conseguem ser protagonistas. Basta organização. O prédio estava abandonado, como tantos outros estão também aqui, no Centro do RIO. Pessoas que necessitavam de um teto, baseando-se sobretudo no que diz a Constituição do país, que garante o direito de os cidadãos terem moradia, foram à Justiça e reivindicaram o benefício. Não foi fácil, mas hoje está tudo funcionando e os 120 apartamentos estão ocupados por pessoas que, no passado, poderiam estar engrossando a fila de tuberculosos nos corredores do Sistema Único de Saúde.

“Não faltam planos, não faltam leis e não falta conhecimento técnico. Falta justiça”, arremata a urbanista Erminia Maricato.

Tem muito mais chances de reflexões em outros episódios, como o que versa sobre agricultura urbana ou sobre a importância da água em nossas vidas de citadinos. Vale a pena assistir e debater.

#Envolverde

apoie