por Maurício Angelo, Mongabay –
- Com 90% de população indígena, São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, tenta se proteger da pandemia limitando o acesso ao município e criando redes de monitoramento. Os indígenas estão entre os mais suscetíveis a infecções respiratórias.
- Cerca de 40 mil indígenas vivem espalhados por uma área do tamanho de Portugal, a mil quilômetros de distância de Manaus por via fluvial e sem um único leito de UTI ou respirador mecânico.
- A situação em São Gabriel torna-se ainda mais delicada pelo fato de o Amazonas ser o estado brasileiro com o maior índice de mortalidade decorrente da covid-19 – 47 mortos por milhão de habitantes. O governo estadual já declarou que o sistema de saúde entrou em colapso.
- São Gabriel da Cachoeira também está marcada por epidemias recentes: em 2018, o município registrou 14 mil casos de malária. Este ano, só em janeiro e fevereiro, já houve 395 casos de dengue.
A cidade mais indígena do Brasil está em pânico. Situada no extremo noroeste do estado do Amazonas – cujo sistema de saúde entrou em colapso –, São Gabriel da Cachoeira tenta de todas as formas evitar a chegada do coronavírus à região.
A prefeitura declarou situação de emergência na saúde pública no dia 18 de março. Desde então, todo o acesso ao município está interrompido e o recém-criado Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Coronavírus vem se reunindo semanalmente para articular as ações de combate à doença.
Até o momento, o único caso registrado de covid-19 na região é a de um militar que trabalhava na cidade mas foi infectado em Manaus e ali morreu.
Cerca de 90% dos 45 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira são indígenas. Em uma área um pouco maior que a de Portugal, 23 etnias vivem a mil quilômetros de distância por via fluvial de Manaus – uma viagem que dura mais de um dia. Na zona urbana, não há UTI nem respirador mecânico. Todos os atendimentos estão concentrados em um único hospital do SUS, com gestão de militares.
Sem saneamento básico e em condições precárias de moradia, a maioria das comunidades está exposta. “Temos que agir rápido para não deixar o coronavírus chegar aqui”, diz Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). “Se tivermos uma proliferação de casos, como está havendo em outras cidades do Brasil, vamos ter uma verdadeira tragédia para os nossos povos, que são muito frágeis para essas doenças pulmonares e respiratórias.”
Marivelton Baré conta que a Foirn, que representa 750 comunidades nativas do Alto Rio Negro, recomendou aos indígenas que não saiam de suas comunidades e evitem ao máximo a circulação.
O médico sanitarista Douglas Rodrigues, em conversa com a reportagem, também relatou a sua preocupação com a pandemia – sobretudo diante de um governo declaradamente anti-indígena, responsável pelo desmonte da Funai e da Sesai, o órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento aos indígenas.
“Quer saber o que acontece com um grupo mais isolado quando entra um vírus de gripe? É o que acontece com a gente com o coronavírus. Ninguém tem imunidade, não temos vacina, a população não conhece, vira essa pandemia”, afirma o médico.
Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tem mais de 40 anos de experiência com povos nativos. É considerado um dos maiores especialistas em saúde indígena do Brasil. Ele também trabalhou no Alto Rio Negro no início dos anos 2000 e tem grande experiência com comunidades isoladas e de recente contato.
“A covid tem um agravante. Como a maioria das pessoas adoecem, você quebra a economia do grupo. Quem vai para a roça, quem vai caçar, pescar, buscar água? Junto com a doença, vem a fome, a falta de água e de hidratação. É caótico”, afirma Rodrigues.
A situação em São Gabriel da Cachoeira é ainda mais delicada se levarmos em conta que o Amazonas é o estado brasileiro com o maior índice de mortalidade proporcional decorrente da covid-19 – 49 mortos por cada milhão de habitantes (em São Paulo, o índice é de cerca de 24).
A taxa de incidência no Amazonas também está entre as mais altas do país: 586 infecções a cada milhão de pessoas, atrás apenas o Amapá. Na última atualização, de 21 de abril, eram 2.270 casos confirmados, dos quais 193 resultaram em morte.
O governo estadual já declarou que o sistema de saúde colapsou. Todos os leitos de UTI do estado – que tem o tamanho do Peru e do Equador juntos – estão concentrados em Manaus, o que obriga algumas comunidades do interior a percorrer grandes distâncias no caso de agravamento da doença. Uma vez na capital, porém, a situação não é das mais promissoras: segundo o Ministério da Saúde, 88% dos leitos de UTI destinados ao tratamento da covid-19 na rede pública estão ocupados.
Entre os indígenas de todo o país, já são 23 casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus – 21 no Amazonas. Mais de 183 mil indígenas vivem no estado, o que representa mais de 20% da população total. O contágio que pode vir de invasores e criminosos também é uma preocupação constante.
Em São Gabriel da Cachoeira, estão sendo monitoradas 97 pessoas que chegaram à cidade após terem passado por regiões onde há o vírus.
Para manter a infecção longe da área, a Foirn conta com uma rede de monitoramento de atividades ilegais com radiofonia instalada nas aldeias. São cerca de 300 estações de rádio ligadas à central na sede de São Gabriel que recebe informações das lideranças sobre movimentos suspeitos e possíveis invasões, como a de garimpeiros, narcotraficantes, traficantes de animais silvestres, barcos de pesca ilegal e outros.
Mas o apoio de órgãos como a Funai é nulo e a fiscalização, ausente. “A direção da Funai não mais defende os interesses dos povos indígenas e sim de grupos empresariais interessados na exploração econômica de nossas terras. A fiscalização ambiental é praticamente inexistente em São Gabriel da Cachoeira”, afirma Marivelton.
O descaso da Fundação Nacional do Índio é conhecido. O jornal O Estado de S. Paulo revelou, por exemplo, que a Funai não gastou nenhum centavo dos R$ 11 milhões que recebeu para proteger os indígenas contra o coronavírus.
Não é uma boa ideia também esperar o apoio de ações de fiscalização lideradas pelo Ibama. Um terço dos fiscais foram afastados por estarem no grupo de risco e, em 2019, 22% das fiscalizações já foram cortadas. O orçamento do Ibama para 2020 é 31% menor e o número de fiscais caiu 55% em uma década. A falta de pagamento neste ano ainda pode paralisar totalmente as fiscalizações em curso.
Histórico de surtos e epidemias
São Gabriel da Cachoeira enfrenta há alguns anos surtos e epidemias que estão marcados na memória da população local, uma realidade que os indígenas de todo o Brasil conhecem bem.
Há dois anos, o município registrou 14 mil casos de malária, o que levou a uma intervenção da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas para enfrentar a epidemia. Este ano foi a dengue, levando São Gabriel a ser o município campeão em ocorrências no Amazonas nos meses de janeiro e fevereiro, com 395 casos.
Entre a população indígena em geral, o quadro é preocupante.
Em 2018, segundo o Ministério da Saúde, doenças infecciosas e parasitárias foram responsáveis por 7,2% das mortes ocorridas entre indígenas, contra 4,5% da média nacional. Doenças respiratórias também foram a causa de 22,6% das mortes de crianças indígenas com menos de um ano registradas em 2019.
Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), afirmou que os indígenas estão apavorados. “Temos um histórico muito perverso de doenças contagiosas, que dizimaram etnias inteiras no passado. Todos estão assustados”, disse em entrevista à agência Pública.
Bolsa Família gera preocupação sobre aglomerações
Não bastassem as limitações sanitárias, até o Bolsa Família tornou-se um desafio adicional para as comunidades indígenas do Alto Rio Negro.
Segundo o Portal da Transparência, só em São Gabriel da Cachoeira são quase 5 mil pessoas favorecidas pelo Bolsa Família, que deposita no máximo R$ 205 por mês para cada família com até cinco beneficiários. Os deslocamentos até a área urbana do município para receberem o auxílio costuma gerar aglomerações, indesejadas em época de pandemia.
A Foirn tenta uma articulação com órgãos públicos para tentar promover uma logística especial de pagamento desses benefícios e a chegada de cestas básicas emergenciais. A federação chegou a encaminhar um ofício para alertar as autoridades sobre o possível extermínio dos povos indígenas caso as populações se aglomerem na área urbana para acessar essa renda.
Em resposta, o MPF solicitou ao governo federal uma adequação diferenciada para o pagamento do auxílio emergencial, do Bolsa Família e de outros benefícios aos indígenas durante a pandemia da covid-19.
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