Novo Guia Alimentar Brasileiro é direcionado à população.
“Comer é um ato político. Quando comemos, influenciamos nossa saúde, nosso bem-estar, nossa relação com as outras pessoas, nossa relação com o meio ambiente e o sistema alimentar. Ou seja, isso tem tudo a ver com o sistema de produção e abastecimento de alimentos do país”, diz a nutricionista Maria Laura Louzada.
O novo Guia Alimentar para a População Brasileira, recém-lançado pelo Ministério da Saúde, “direciona-se principalmente às pessoas (e não só aos profissionais), fala mais de comida, usa menos termos técnicos e, como grande inovação, aborda as circunstâncias que envolvem o ato de comer (como, onde e com quem comer)”, sintetiza Maria Laura Louzada à IHU On-Line. Segundo ela, o Guia atual é “radicalmente” diferente do anterior, que tinha “orientações majoritariamente baseadas no objetivo de equilibrar a quantidade consumida de nutrientes”.
Elaborado com “base nos dados da pesquisa nacional sobre o consumo alimentar da população brasileira”, o novo Guia alimentar teve a preocupação de analisar os “hábitos dos brasileiros” e basear “todas as recomendações nos padrões de alimentação saudável já praticados por uma parcela substancial da população, aquela que baseia sua alimentação em alimentos e preparações culinárias”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Maria Laura Louzada comenta ainda o processo de “queda da desnutrição infantil associada ao aumento da renda, da escolaridade, da assistência à saúde e da melhora das condições de saneamento básico”. Entretanto, em contrapartida, alerta, “observamos um aumento intenso e contínuo da obesidade no país nas últimas décadas. Segundo a última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que mede peso e altura dos brasileiros, o excesso de peso (índice de massa corporal igual ou acima de 25 kg/m² — um grau mais leve de sobrepeso) foi diagnosticado em cerca de metade dos adultos, e a obesidade (índice de massa corporal igual ou acima de 30 kg/m²), em cerca de 15%”.
Maria Laura Louzada é graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre – UFCSPA, onde também realizou mestrado. Atualmente é doutoranda em Nutrição e Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que mudou na realidade social brasileira, comparando as duas últimas décadas do século XX com a primeira década e meia do século XXI? Que percentual da população ainda sofre com a desnutrição e que parcela sofre de obesidade?
Maria Laura Louzada – O Brasil mudou muito. Passamos por diversas transições nos campos político, econômico, social, epidemiológico e nutricional. No fim do século XX, o Brasil ainda se recuperava dos danos causados pela ditadura militar, tinha uma economia bem mais instável, dados alarmantes de fome e pobreza e estava começando a construir o Sistema Único de Saúde. Além disso, o problema da desnutrição infantil ainda nos assustava muito e a obesidade não recebia tanta atenção.
De lá para cá, observamos uma queda espetacular da desnutrição infantil associada ao aumento da renda, da escolaridade, da assistência à saúde e da melhora das condições de saneamento básico. Segundo o último relatório de Segurança Alimentar e Nutricional da FAO – Food and Agricultural Organization, o Brasil é um exemplo de superação da fome como um problema de saúde pública.
Em compensação, observamos um aumento intenso e contínuo da obesidade no país nas últimas décadas. Segundo a última pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que mede peso e altura dos brasileiros, o excesso de peso (índice de massa corporal igual ou acima de 25 kg/m² — um grau mais leve de sobrepeso) foi diagnosticado em cerca de metade dos adultos, e a obesidade (índice de massa corporal igual ou acima de 30 kg/m²), em cerca de 15%. O problema já atinge crianças e adolescentes também.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças entre o atual Guia Alimentar para a população brasileira e o antigo? Que aspectos foram levados em conta? Por que havia necessidade de reformulação?
Maria Laura Louzada – A necessidade de reformulação ocorreu exatamente por todas essas mudanças ocorridas no país nos últimos anos. Mudanças essas de ordem social e conômica (diminuição da pobreza e maior acesso a bens de consumo), epidemiológica (doenças infecciosas de certa forma controladas e explosão de doenças crônicas como hipertensão e diabetes), demográficas (envelhecimento da população) e nutricional (mudança nos padrões alimentares).
Os dois Guias são radicalmente diferentes. O primeiro Guia dialogava com diversos setores da sociedade (pessoas, profissionais, gestores, indústria) e suas orientações eram majoritariamente baseadas no objetivo de equilibrar a quantidade consumida de nutrientes. As orientações abordavam grupos de alimentos com perfis nutricionais semelhantes e qual a quantidade que deveria ser consumida de cada um deles.
O novo Guia direciona-se principalmente às pessoas (e não só aos profissionais), fala mais de comida, usa menos termos técnicos e, como grande inovação, aborda as circunstâncias que envolvem o ato de comer (como, onde e com quem comer). Nesse capítulo, também há uma demarcação do posicionamento feminista do Guia, que é de valorizar o compartilhamento de todas as atividades relacionados ao ato de comer (desde seleção, compras, preparo até a higienização de utensílios). Sabe-se que historicamente essas tarefas foram de responsabilidade da mulher e, com a dinâmica de trabalho atual, a única forma de mantermos e cultivarmos o prazer pela culinária é não deixarmos as tarefas pesarem apenas para uma pessoa da família.
Outras duas inovações que acho muito interessantes:
– Basear as recomendações em padrões de alimentação praticados por uma parcela substancial da população brasileira, aquela que baseia sua alimentação em alimentos e preparações culinárias. Ou seja, a principal base do Guia é aquilo que a gente já come e não aquilo que está destacado em estudos e que, muitas vezes, foram feitos em países com hábitos alimentares bem diferentes dos nossos.
– Destacar e discutir alguns obstáculos que podem ser encontrados para o seguimento das orientações do Guia (último capítulo). Isso é extremamente relevante, pois assumimos que o ato de comer não é algo ligado puramente a escolhas individuais, mas muito ligado ao ambiente alimentar, ao acesso e à informação. Por isso, esse Guia também tem o papel de empoderar as pessoas para lutarem pela garantia de melhores condições para se alimentarem no lugar onde vivem.
IHU On-Line – Como o trabalho de produção de tal texto foi construído? Que metodologias foram utilizadas? Quem participou do processo? Quanto tempo levou para ser feito?
Maria Laura Louzada – O Guia Alimentar foi elaborado pelo Ministério da Saúde junto com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde – NUPENS da Universidade de São Paulo e apoiado pela Organização Pan-Americana de Saúde – Brasil. O processo de construção levou cerca de três anos.
Como citado acima, a grande inovação do processo de criação do novo Guia foi que as orientações foram elaboradas com base nos dados da pesquisa nacional sobre o consumo alimentar da população brasileira. Ou seja, analisamos os hábitos dos brasileiros e baseamos todas as recomendações nos padrões de alimentação saudável já praticados por uma parcela substancial da população, aquela que baseia sua alimentação em alimentos e preparações culinárias. A principal base do Guia, portanto, é aquilo que a gente já come e não aquilo que está destacado em estudos e que, muitas vezes, foram feitos em países com hábitos alimentares bem diferentes dos nossos.
O processo de elaboração e revisão envolveu diferentes profissionais e a realização de duas oficinas com especialistas de diversos setores, entre eles saúde, educação e assistência social, entidades de classe e representantes da sociedade civil.
A etapa final consistiu na Consulta Pública, que ficou aberta por três meses e contou com a participação de diferentes atores da sociedade. Inúmeras manifestações contribuíram substancialmente para a versão final.
IHU On-Line – Quais são os princípios que orientaram a construção do novo Guia Alimentar para a população brasileira? Em que medida eles são mais condizentes com nossa realidade?
Maria Laura Louzada – Os princípios norteadores expressam exatamente que esse Guia tem um olhar amplo em relação ao saberes e que é feito para a população brasileira no tempo atual. Um Guia que realmente dialogue com o seu público-alvo jamais poderá ser universal e descontextualizado da realidade local.
Os princípios do guia são:
(1) Alimentação é mais do que a ingestão de nutrientes;
(2) Recomendações sobre alimentação devem estar em sintonia com o seu tempo;
(3) Alimentação adequada e saudável deriva de sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável;
(4) Diferentes saberes geram o conhecimento necessário para a formulação de guias alimentares;
(5) Guias alimentares promovem autonomia nas escolhas alimentares.
IHU On-Line – De que ordem são os desafios com relação à implementação do novo Guia Alimentar?
Maria Laura Louzada – O Brasil é um país com cerca de 200 milhões de habitantes, enormes disparidades regionais, sociais e étnicas. Certamente o maior desafio é fazer com que as informações cheguem às pessoas e que o documento contribua para a promoção da saúde com equidade e integralidade.
IHU On-Line – Levando em conta os diferentes contextos sociais e geográficos do Brasil, como essa multiplicidade de possibilidades foi contemplada no novo documento sobre alimentação aos brasileiros?
Maria Laura Louzada – As recomendações gerais de Guia para basearmos a alimentação em alimentos frescos e minimamente processados são universais, ou seja, para qualquer pessoa e em qualquer lugar. A partir disso, deixamos claro que as variações e a diversificação são (e devem ser) totalmente vinculadas à cultura, à história, à tradição e também às preferências individuais. No capítulo em que ilustramos as refeições realizadas pelos brasileiros, utilizamos exemplos de pessoas de todas as regiões e classes de renda do país com o objetivo de contemplarmos todas essas diferenças.
IHU On-Line – Em que medida o ato de se alimentar e a escolha de determinados tipos de alimentos se constituem em atos políticos de responsabilidade social? O que isso tem a ver com o agronegócio ou a agricultura familiar?
Maria Laura Louzada – Comer é um ato político. Quando comemos, influenciamos nossa saúde, nosso bem-estar, nossa relação com as outras pessoas, nossa relação com o meio ambiente e o sistema alimentar. Ou seja, isso tem tudo a ver com o sistema de produção e abastecimento de alimentos do país. Quando comemos um alimento orgânico ou um alimento proveniente da produção familiar, por exemplo, estamos nos posicionando a favor de um sistema de produção. Nesse caso, apoiamos a justiça social, a valorização do produtor familiar, o emprego no campo e a sustentabilidade ambiental.
IHU On-Line – Considerando as complexidades inerentes ao nosso tempo, de que forma aspectos não relacionados ao se alimentar, como mobilidade urbana, rotina de trabalho, etc., estão imbrincados em uma prática alimentar adequada?
Maria Laura Louzada – Certamente o comer é muito mais do que o alimento. Uma rotina alimentar saudável depende de um ambiente saudável. É impossível fazermos as melhores escolhas se não vivemos em um bairro com locais adequados para compras de alimentos frescos, se perdemos grande parte do nosso tempo com locomoção para o trabalho ou se estamos sempre fatigados. Por causa disso, a luta por melhores condições de moradia, de emprego, por um transporte público digno, por uma jornada de trabalho adequada e por locais apropriados e seguros para a prática de atividade física faz parte de um conceito amplo do que é saúde.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.