Por Boaventura de Sousa Santos e Lino João de Oliveira Neves, Le Monde Diplomatique Brasil –
A pandemia de Covid-19 que assola a humanidade atinge gravemente o Brasil, que ocupa a posição de segundo país em casos e mortes, números esses que aumentam a cada dia. Essa situação já grave por si mesma fica ainda mais trágica com a demora e ineficácia das medidas tomadas pelos órgãos públicos de saúde para o enfrentamento do coronavírus.
O Brasil, que chegou a ter um sistema de saúde pública forte e estruturado, foi nos últimos governos submetido à aliança entre a irresponsabilidade social e os interesses privados para os quais a saúde é apenas mais uma área de investimento altamente lucrativa. Como consequência, o Sistema Único de Saúde, tomado como referência por vários países, está hoje completamente desestruturado, não atendendo às necessidades médico-sanitárias nem sequer em tempos de normalidade, quanto mais em momentos de crise.
Na questão indígenas, além da sabida morosidade da burocracia estatal, o Brasil vive sob a égide de uma política que tem por objetivo eliminar os direitos inscritos na Constituição de 1988 e em acordos internacionais dos quais é signatário.
O presidente Jair Bolsonaro demonstra não apenas resistência em adotar medidas de enfrentamento à pandemia, como também ineficiência e irresponsabilidade. Em uma cumplicidade perversa, o coronavírus se apresenta como um aliado poderoso para livrar seu governo da presença de povos indígenas, que, em sua desrazão, representam um obstáculo ao seu projeto de desenvolvimento de “terra arrasada”.
Como aliado poderoso, e oportuno, o coronavírus, em sua fúria destrutiva de gentes e culturas, pode promover a “limpeza das terras indígenas”, permitindo que elas sejam finalmente entregues à exploração extrativista dos recursos naturais e à expansão do agronegócio.
A Covid-19 está disseminada por todos os estados brasileiros. Depois de tomar as capitais e os centros urbanos mais populosos, o coronavírus avança rápido para o interior. Não por acaso, as vozes mais responsáveis alertam para o risco iminente de genocídio no Brasil. O genocídio é uma realidade cada vez mais próxima na medida em que a Covid-19 se esparrama pela Amazônia, região onde está a maioria dos povos indígenas.
Um dos locais mais afetados é a tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, com grande concentração de populações indígenas de diversas etnias. É nessa região que se registra o maior número de contaminados e o maior número de óbitos indígenas no Brasil. É uma área crítica, pois faz limite com o Departamento Amazonas, na Colômbia, e o Departamento de Loreto, no Peru, locais onde a incidência de Covid-19 está generalizada, e a propagação, fora de controle.
No lado brasileiro é particularmente preocupante a situação no Vale do Javari. A Terra Indígena Vale do Javari é a área indígena com o maior número dos chamados “povos isolados”, indígenas em isolamento voluntário de todo o mundo.
Sete etnias distintas compartilham o território do Vale do Javari: cinco povos (Kanamari, Kulina, da família linguística Pano, Marubo, Matsés (Mayoruna), Matís), que há cerca de cinquenta anos mantêm relações regulares, porém distanciadas, com segmentos da população regional; e dois povos de recente contato (Korubo e Tsomhwâk Djapa), que mantêm relações esporádicas, principalmente com povos que lhes são aparentados culturalmente. Além desses, pelo menos dezoito grupos vivem em áreas de difícil acesso no interior da floresta. Existem apenas evidências de sua presença, mas praticamente nenhuma informação específica, a não ser a que de em período histórico anterior foram vítimas de violências e, por isso, buscam o isolamento como forma de sobrevivência.
Reconhecida pelo Estado brasileiro como território de usufruto exclusivo dos povos indígenas – contatados e não – que nela habitam, a Terra Indígena Vale do Javari é formalmente uma área protegida.
Contudo, assim como acontece com todas as terras indígenas do Brasil, ameaçadas pela política anti-indígena do governo Bolsonaro, o Vale do Javari está fragilizado tanto nas medidas de proteção territorial que deveriam resguardar sua integridade territorial contra as investidas de invasores quanto de iniciativa de proteção sanitária para conter o avanço do coronavírus.
Os Kanamari foram os primeiros indígenas do Vale do Javari a serem infectados pela Covid-19. Essa contaminação se deu por meio de servidores do Distrito Sanitário Especial Indígena – órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento aos indígenas –, que não observaram as exigências do protocolo de atendimento à saúde e entraram na aldeia Kanamari sem cumprir o período de quarentena. Os primeiros casos foram registrados no dia 6 de junho, e desde então o contágio só vem aumentando.
Assim como muitos povos em outras partes do país, cansados de esperar medidas efetivas tomadas pelos poderes públicos para enfrentar a situação de contágio e barrar seu avanço, os Kanamari tomaram a iniciativa de buscar apoios para o tratamento médico daqueles já contaminados e para garantir a sobrevivência de suas populações no período de isolamento social, além de criarem barreiras sanitárias para impedir que a doença chegue às suas aldeias. Confira a seguir mensagem do povo Kanamari.
Campanha Kanamari
“Os Kanamari (autodenominados Tüküna), da Terra Indígena Vale do Javari, lançaram uma campanha de arrecadação de recursos para que possam continuar nas aldeias durante a pandemia da Covid-19.
Até o momento, o governo brasileiro e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não apresentaram ações emergenciais e específicas para proteger os habitantes do Vale do Javari. Então, os próprios povos originários iniciaram ações para se protegerem da pandemia. A principal preocupação é com a disseminação da doença nas aldeias.
As consequências da crise da Covid-19 se manifestam de diferentes maneiras nos contextos locais, e as demandas também são, em muitos casos, diferentes daquelas dos outros indígenas.
A Terra Indígena Vale do Javari é constantemente invadida por caçadores e pescadores ilegais, o que potencializa a transmissão do contágio da Covid-19.
A preocupação também é com o suprimento de alimentos. Com a pandemia, muitas famílias para estavam na cidade retornaram para suas aldeias. Com isso, a demanda por alimento aumentou. Para os que estão nas aldeias, a urgência é de recurso financeiro para comprar material para caça e pesca e combustível para as embarcações utilizadas em casos de deslocamentos de urgência. Para os que continuam na cidade, a necessidade mais urgente são cestas básicas de alimentos, máscaras de proteção e produtos de limpeza e higiene.
O Vale do Javari é uma área de difícil acesso e a cada momento a Covid-19 se alastra mais, podendo ocorrer um genocídio, principalmente dos povos isolados que vivem no território.
Nós, Kanamari, precisamos de apoio urgente, tanto para ajudar as pessoas de nosso povo que estão infectadas como para proteger os povos isolados.
Fazemos um apelo aos amigos que desejam colaborar com os povos indígenas a incluir em suas listas o Povo Kanamari do Vale do Javari.”
Como ajudar
Contatos: +55 97 99166-7595 – WhatsApp: +55 97 98416-7375
PayPal: [email protected]
Banco Bradesco
Agência: 0736-6 Conta-corrente: 0700672-1
Higson Dias Castelo Branco (Presidente da Associação dos Kanamari do Vale do Javari – AKAVAJA, Amazônia/Brasil)
CPF: 950.139.382-87
E-mail: [email protected]
Boaventura de Sousa Santos é diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Lino João de Oliveira Neves é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
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