ODS 16

Drogas confirmam batalha civilizatória que domina a política no Brasil

O Supremo Tribunal Federal, durante sessão em sua sede em Brasília, no dia 26 de junho, em que aprovou a descriminalização do consumo de maconha, para quem portar até 40 gramas. Assim, corrigiu uma omissão na lei sobre drogas de 2006 que não estabelecia critérios para distinguir entre usuários e traficantes.

Drogas confirmam batalha civilizatória que domina a política no Brasil

Por Mario Osava, IPS –

A descriminalização do consumo de maconha desencadeou um conflito entre os poderes Legislativo e Judiciário no Brasil, refletindo a batalha civilizatória que domina a política desde que a extrema direita ganhou força para impor suas diretrizes, ou pelo menos tentar.

O Supremo Tribunal Federal (STF), corte constitucional e última instância judicial do país, decidiu nesta quarta-feira, 26 de junho, que portar até 40 gramas de maconha não caracteriza infração legal, portanto está isento de penas como prisão ou benefícios. Serviços comunitários.

Nem o cultivo doméstico de até seis plantas de cannabis sativa, o arbusto que produz o princípio ativo da maconha.

Na véspera, por maioria de sete de seus 11 juízes, o STF havia decidido que o porte de drogas para consumo não era considerado crime, antes de fixar o valor máximo para definir o uso pessoal, distinto do tráfico, e concluir um julgamento que começou em 2015 e foi interrompido diversas vezes.

Contrariando a decisão e o que considera uma interferência do STF em uma prerrogativa legislativa, o Senado aprovou um projeto de emenda constitucional que criminaliza tudo como crime, inclusive o usuário com qualquer quantidade de maconha ou outras drogas ilícitas.

“A proibição das drogas é o combustível da guerra do Estado contra os negros, os pobres e os moradores de bairros pobres”: Manifesto da Marcha da Maconha do dia 16 de junho em São Paulo.

“A descriminalização só pode ocorrer por meio de processo legislativo”, disse o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, autor da proposta que depende de aprovação na Câmara dos Deputados, onde deverá tramitar no próximo semestre.

A tentativa é identificar qualquer uso de drogas na Constituição como infração penal para evitar interpretações do tribunal constitucional sobre a legislação sobre o tema.

O STF descriminalizou o consumo após declarar inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas aprovada pelo Congresso em 2006, por não estabelecer critérios objetivos para distinguir o consumidor do traficante. A decisão atual permanecerá em vigor até que os legisladores corrijam essa omissão.

Mas também foi argumentado que uma atividade pessoal, praticada na privacidade, sem risco para a sociedade, não pode ser punida criminalmente, mesmo que possa causar lesões autoprovocadas.

Batalha civilizatória

A batalha entre o STF e o Congresso se multiplicou nos últimos anos, assim como as brigas entre o Executivo e o Judiciário durante o governo de extrema direita do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), com ameaças do presidente ao Supremo Tribunal Federal e para alguns de seus juízes.

A extrema direita e, através da sua influência, o Congresso procuram impor retrocessos no nível de civilização alcançado nas últimas décadas. São “valores” em jogo, segundo os seus líderes, mas as batalhas envolvem mais do que o aborto, a educação sexual e os direitos das minorias sexuais.

O ambiente, a ciência, o controlo de armas, as vacinas, os direitos humanos, a igualdade de género e os direitos das mulheres, os programas sociais e o combate às desigualdades econômicas também são alvos de ataques.

Durante a pandemia de Covid-19, o STF teve que bloquear diversas intenções de Bolsonaro, como incentivar o uso de medicamentos inadequados, impor restrições aos governos dos 26 estados brasileiros e dificultar a aquisição de vacinas.

O presidente do STF, Luiz Roberto Barroso, na tentativa de limitar as reações, tentou esclarecer que a descriminalização aprovada não significa a legalização do consumo de maconha, que continua sendo uma “infração administrativa” que pode obrigar o consumidor a medidas educativas, como um curso sobre os malefícios das drogas.

Além disso, a autoridade policial ou judiciária pode identificar como traficante quem portar menos de 40 gramas, mas possuir provas e equipamentos que denunciem o tráfico de drogas, como balanças de precisão, registros ou notas de venda, por exemplo.

A Marcha da Maconha na cidade de São Paulo, em 16 de junho, reuniu milhares de pessoas para protestar por “a guerra contra pessoas negras e pobres” promovida pela polícia na repressão ao consumo desta e de outras drogas, com milhares de mortos e presos injustamente. Imagem: Paula Pinto/Agência Brasil

Progresso com limitações

O movimento pela legalização das drogas comemorou a decisão como “um avanço”, mas limitada e com lacunas que podem manter injustiças como a penalização de negros e pobres como traficantes, mesmo quando carregam a mesma quantidade de maconha que os brancos.

“Poderia ser melhor se considerasse todas as drogas, como afirmou o juiz Gilmar Mendes como relator do caso em 2015”, disse à IPS a socióloga Monique Prado, ativista da Marcha da Maconha no Rio de Janeiro e assessora parlamentar para políticas sobre drogas.

Mendes, reitor do STF, também defendeu abordar o tema “no âmbito da saúde pública e não da segurança pública”, mas depois mudou de posição para limitar a descriminalização à maconha.

“Devemos manter a luta pela transição, pela adequação da Justiça à decisão do STF. O Estado gasta 3.000 reais (US$ 550) para cada preso. Além dessa economia, a Justiça pode ganhar agilidade com menos detentos. Tudo isso pode ser convertido em mais educação”, disse Prado, que se define como um antiproibicionista.

Argumentou que é necessário informar melhor a população e promover políticas como as já adotadas em outros países, incluindo a legalização total da maconha e medidas históricas de reparação para os setores mais afetados pela antiga repressão ao consumo de drogas.

Portugal, a antiga metrópole, e o Uruguai, seu vizinho ao sul, são alguns exemplos. Mas Prado destacou que nos Estados Unidos já existem 23 dos seus 50 estados que regulamentaram o consumo de maconha.

Um caso “interessante” é o do estado de Illinois, que também adotou políticas de compensação para os mais afetados, como um fundo para comunidades negras e mulheres, com investimentos e regulação do mercado de maconha para gerar trabalho e renda para esses setores anteriormente vitimizados.

“A proibição das drogas é o combustível da guerra do Estado contra os negros, os pobres e os moradores de bairros pobres”, denunciou a Marcha da Maconha em sua manifestação do dia 16 de junho em São Paulo.

A decisão do STF é “histórica”, merece comemorações e no momento atual de forte onda conservadora social e política no mundo, uma Justiça que “caminha a favor da sociedade” também deve ser comemorada, segundo Fabricio Brazão, médico de família, dedicado à saúde pública em Belém, capital do estado do Pará, no norte da Amazônia brasileira.

Reparação aos negros

“A reparação histórica à população negra, das periferias e favelas, que mais sofreu com a onda de criminalização, é a principal ação a ser realizada” para dar cumprimento a esta decisão, disse à IPS, por telefone, de Belém.

Este médico, que também trabalha com os usos medicinais da cannabis, estima que existam mais de 40 mil presos atuais que podem se beneficiar da decisão do STF.

Além disso, o Conselho Nacional de Justiça informou que vai apurar quais detentos podem ser absolvidos agora, já que o STF decidiu que sua decisão é retroativa. Portanto, há 6.343 réus ainda sem julgamento que não deveriam mais sofrer incriminação.

O futuro depende das tentativas do Congresso Nacional de reverter as leis antidrogas, na direção oposta à de quase todo o mundo.

No caso do aborto em gestações com mais de 22 semanas, tentou anular uma legislação datada de nada menos que 1940, que o legalizava em casos de estupro e riscos de morte materna.

Mas conseguiu aprovar o fim do benefício da libertação temporária de presos de bom comportamento para visitas familiares, anulando aquela medida aprovada em 2011 com o objetivo de ressocializar os detidos.

Outros retrocessos se acumulam na área ambiental, ignorando a crise climática que o mundo vive e os consequentes eventos extremos, incluindo as enchentes sofridas por mais de 470 cidades do sul do estado do Rio Grande do Sul em maio, com mais de 170 mortes e 630.000 despejados.

A extrema-direita, que causou danos sociais, ambientais e econômicos durante o seu governo presidido por Bolsonaro, continua a impor retrocessos no seu poder eleitoral, comprovados pelas sondagens. Os governantes nacionais e regionais, tal como os legisladores, cedem à pressão para evitar a perda de eleitores em eleições futuras.

Envolverde