Roma, Itália, 26/11/2014 – Os paradoxos da nutrição não acabam com os 805 milhões de pessoas que a cada dia vão dormir com fome enquanto se desperdiça um terço da produção mundial de alimentos, nada menos do que 1,3 bilhão de toneladas por ano. Também há dois bilhões de indivíduos com deficiências de micronutrientes, enquanto 500 milhões são obesos.
O primeiro Informe da Nutrição Mundial, uma publicação avalizada por pares e divulgada este mês, bem como dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), destacam o complexo fenômeno que há por trás da má nutrição.
“A dupla carga da má nutrição é uma situação onde o sobrepeso e a obesidade coexistem com a subnutrição no mesmo país”, segundo Anna Lartey, diretora da Divisão de Nutrição da FAO. “E a vivemos em muitos países que estão se desenvolvendo economicamente e que estão passando pela transição nutricional”, acrescentou. Assim, além de combater a fome, governos e organizações que promovem o desenvolvimento também se viram forçados a abordar a sobrenutrição.
“Enquanto a subnutrição ainda mata quase 1,5 milhão de mulheres, meninas e meninos anualmente, a crescente proporção de casos de sobrepeso e obesidade em todo o mundo estão levando a um aumento de doenças como o câncer, as cardíacas, apoplexias e diabetes”, declarou em um comunicado o diretor do Departamento de Nutrição para a Saúde e o Desenvolvimento na Organização Mundial da Saúde (OMS), Francesco Branca.
A solução não está no âmbito da ciência, da saúde ou da agricultura somente. Requer um enfoque intersetorial e multidimensional que inclua educação, empoderamento das mulheres, regulamentação do mercado, pesquisa tecnológica e, sobretudo, compromisso político.
Por esse motivo, representantes de governos, instituições multilaterais, sociedade civil e setor privado se reuniram na Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (CIN2), que aconteceu entre os dias 19 e 21 deste mês, na sede da FAO em Roma. Organizado em conjunto por esta agência da ONU e a OMS, o encontro ocorreu 22 anos depois de sua primeira edição e, lamentavelmente, abordou os mesmos problemas, ainda sem resolver.
A má nutrição, em todas suas formas, tem repercussões sobre a capacidade das pessoas viverem uma vida plena, de trabalharem, cuidarem dos filhos, serem produtivas, gerarem um ciclo positivo e melhorarem suas condições de vida.
Dados do Informe da Nutrição Mundial, apresentado durante a CIN2, estimam que a má nutrição custa entre 4% e 5% do produto interno bruto nacional, o que sugere que é mais rentável preveni-la. Com o objetivo de melhorar a nutrição mediante a implantação de políticas baseadas em evidências e uma cooperação internacional efetiva, a CIN2 produziu dois documentos para ajudar governos e outros atores a se encaminharem na direção correta. Trata-se da Declaração de Roma sobre a Nutrição e o Contexto de Ação.
A Conferência também foi testemunha de um forte apelo à responsabilidade e ao fortalecimento da nutrição na agenda de desenvolvimento pós-2015.
“O atual sistema alimentar hegemônico e o modelo de produção industrial não são apenas incapazes de dar resposta aos problemas de má nutrição existentes, como também contribuem para a criação de diferentes formas de má nutrição e com a redução da diversidade e da qualidade de nossas dietas”, destacou Flavio Valente, representante de organizações da sociedade civil na CIN2.
Essa posição foi compartilhada por muitos oradores, que destacaram o impacto negativo que tem a publicidade de alimentos pouco saudáveis, principalmente sobre as crianças.
Segundo um participante chileno, qualificar a obesidade como doença não transmissível é enganoso, porque ela se propaga pelos meios de comunicação de modo muito efetivo. Atualmente, o Chile corre o risco de empresas multinacionais de alimentos denunciarem esse país junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) por seu compromisso em proteger a saúde pública regulando a publicidade de certos produtos, acrescentou.
Isso acontece em um país onde 60% da população apresenta sobrenutrição e uma pessoa obesa morre a cada hora, segundo o representante permanente do Chile na FAO, Luis Fernando Ayala González.
Em seu discurso na conferência, a rainha Letizia, da Espanha, também admitiu a responsabilidade do setor privado, dizendo que é necessário ajudar no sentido de os interesses econômicos convergirem para a saúde pública. Em todo o mundo não existe um só país que tenha conseguido reverter a epidemia de obesidade em todas as faixas etárias, destacou.
O resultado da CIN2 gerou consenso em torno de um plano de ação e alguns objetivos fundamentais. Inculcar nas crianças hábitos alimentares saudáveis, bem como nas mulheres que estão encarregadas de alimentar suas famílias, foi considerado um fator crucial, como também a amamentação, que deveria ser estendida (por meio de licenças-maternidade pagas e de instalações para amamentar no local de trabalho), e a necessidade de empoderar as mulheres que trabalham na agricultura.
Apoiar a pequena agricultura familiar também dará às pessoas melhores oportunidades de comer produtos locais, frescos e da estação, bem como frutas e verduras, reduzindo o consumo de alimentos processados e embalados, que frequentemente têm baixo conteúdo de nutrientes, vitaminas e fibras e contêm altos índices de calorias, açúcar, sal e gorduras.
No entanto, não basta ensinar as pessoas como comerem se não tiverem acesso fácil a alimentos de qualidade. Daí a necessidade de contar com políticas relevantes, dirigidas à cadeia alimentar e à distribuição. Iniciativas como o programa Frutas nas Escolas, proposto pela Nova Zelândia, vão na direção correta, especialmente se forem implantadas no contexto de uma política coordenada que promova a atividade física e um estilo de vida saudável que combate o consumo de álcool e tabaco. Envolverde/IPS