Por Juliana Zellauy Feres, especial para Envolverde –
O que a morte por excesso de trabalho e tragédias socioambientais tem em comum?
Kenji Hamada era um profissional de 42 anos de uma empresa de seguros com um ambiente extremamente competitivo. Ele trabalhava cerca de 75 horas por semana, além de levar diariamente cerca de quatro horas no transporte casa-traballho-casa. Foi encontrado morto por seus colegas em sua mesa de trabalho. Causa da morte: karoshi.
Karoshi é uma expressão japonesa que literalmente significa “morte por excesso de trabalho” ou morte súbita ocupacional, sendo as suas principais causas ataques do coração e derrames devido ao estresse. Este termo foi cunhado em 1987 durante a bolha econômica do Japão, quando executivos de alto nível ainda no seus primeiros anos de atuação e média etária de 25 a 45 anos, morriam subitamente sem qualquer sinal prévio de problemas de saúde. Só no Japão, onde as estatísticas são bem documentadas pelo Ministério do Trabalho, estima-se que por ano ocorram 10.000 mortes por karoshi.
No Brasil, apesar de não existirem dados estatísticos disponíveis sobre este mal, não é incomum vermos ao nosso redor conhecidos visivelmente afetados pelo excesso de trabalho, seja em termos de saúde física ou mental. Pessoas que, mesmo jovens, apresentam problemas sérios de ansiedade crônica, depressão e burnout (estafa).
Também é comum termos conhecimento quase que diário de tragédias que afetam de forma contundente o meio ambiente e a sociedade, seja um rompimento de barragem, uso de defensivos agrícolas que são proibidos em outros países, desmatamento, disposição ilegal de resíduos, e tantos outros exemplos de como aparentemente sociedade e meio ambiente não são considerados importantes na equação econômica.
E o que karoshi e estas tragédias socioambientais tem em comum mesmo? Em ambos os casos é explícito o peso maior dos resultados financeiros em detrimento do cuidado com o ser humano e com o ambiente. Não vou dizer que as organizações por trás destes fatos não consideram a sociedade e o meio ambiente fatores importantes, mas sim que, no final das contas o determinante para a tomada de decisão é o resultado financeiro.
Você pode me achar inocente por considerar que este não deva ser o fator determinante. Mas, vale a pena relembramos que, quando tratamos de sustentabilidade, o famoso triple bottom line não pode considerar pesos iguais para economia, a sociedade e o meio ambiente, simplesmente porque isso é irreal, não condiz com os fatos. E o fato é que a economia depende da sociedade para existir e a sociedade depende do meio ambiente para sobreviver. Então, inocente é considerar que os resultados financeiros devam estar acima de tudo ou que a nossa sobrevivência é totalmente dependente de fatores mais importantes do que eles?
Ok, mas então como alterar esta equação? Existe sim uma solução, e é o que organizações como o Banco Mundial, o Fórum Econômico Mundial e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estão se movimentando para implementar. Trata-se da Economia do Cuidado (Caring Economy), que é um sistema econômico no qual o cuidado genuíno das pessoas e da natureza é a principal prioridade, acima do lucro. Neste sistema, ao invés do que ocorre atualmente, onde o lucro é o definidor das decisões organizacionais, o cuidado com as pessoas e a natureza são as diretrizes primordiais que definem as tomadas de decisão. Neste sistema, a questão financeira é claro que está sim presente, até mesmo para manter a sustentabilidade dos negócios, a empregabilidade e a saúde econômica, mas ele prioriza algo muito mais importante do que o lucro per se: a nossa perenidade como humanidade.
Para além da competição, a Economia do Cuidado preza pela cooperação, aliando cuidado e prosperidade. Também ao invés de prezar pelo crescimento infinito (portanto, impossível, já que os recursos são finitos), preza pelo desenvolvimento sustentável, que trata não apenas dos recursos físicos, mas também da justiça, equidade, saúde, segurança econômica, conhecimento, arte, ciência, ou seja, o ser humano em toda a sua complexidade e não apenas o fragmentado “homo economicus”.
Utopia? Na verdade a Economia do Cuidado já está sendo colocada em prática. Nas palavras da economista Thera van Osch “de fato, esta nova economia já existe. Sua abordagem é tão evidente e comum que nós simplesmente não a vemos, embora esteja lá e sempre tenha existido por toda a história da humanidade. O cuidado humano é a chave para a sobrevivência da humanidade desde que os seres humanos nasceram. A transição para uma economia do cuidado é principalmente uma questão de alinhar a política econômica ao paradigma do ser humano”.
Quando tratamos do chamado setor “dois e meio”, em que negócios de impacto social combinam foco em lucro com transformação social e geração de impacto positivo, estamos falando de Economia do Cuidado. Mas esta nova economia não se trata apenas de empresas, trata também da ação da sociedade civil por meio da governança local e da implementação de políticas públicas como subsídios fiscais que promovam o equilíbrio social e ambiental ou taxação sobre produtos que prejudiquem a saúde ou o meio ambiente, para citar apenas alguns exemplos.
Mais do que isso, Economia do Cuidado envolve combate à pobreza e às desigualdades, proteção dos sistemas naturais, saúde e bem-estar, produção e consumo sustentáveis, trabalho decente, desenvolvimento local, equidade de gênero e inclusão social, justiça, entre outros temas de grande complexidade e que se afetam mutuamente.
Talvez algumas pessoas considerem esta nova forma de atuação econômica impossível ao olhar para o nosso cenário atual. Mas não estamos discutindo aqui como as coisas são e sim, de como devem ser. E de como podemos fazer para chegar lá.