Por Darlene Menconi* –
Como primeira repórter de Tecnologia da revista VEJA, assisti de camarote às reações do Grupo Abril às mudanças inevitáveis da era digital. O colapso do maior império editorial do país era bola cantada. Foi um misto de falta de visão estratégica sobre as mudanças que a tecnologia trazia com apego às comezinhas rivalidades internas. O texto bíblico do Eclesiastes explica em parte o que, à primeira vista, parece ser arrogância: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Era isso.
Não acho justo apontar o dedo apenas ao império dos Civita porque são absolutamente idênticos a todos os demais grupos e empresas de mídia. São avessos à inovação. VEJA estava entre as quatro principais revistas de notícias do planeta, fato que nos orgulhávamos de repetir. O leitor não imagina o que um ser humano é capaz de fazer ante a promessa de ser capa de VEJA.
Tenho lembrança de três episódios marcantes por peculiares. E sintomáticos. O primeiro foi uma ação de marketing histórica promovida pela Microsoft para lançar um produto que trazia o alicerce para a expansão da computação pessoal. Era 1995, o produto em questão era o Windows 95 e para lançá-lo mundialmente, a Microsoft comprou 1,5 milhão de exemplares de The New York Times. Foi notícia no mundo todo.
Nós, jornalistas de tecnologia, sabíamos da relevância do que acontecia. Era um divisor de águas para a indústria de informática. Não sou, nem nunca fui fã da Microsoft. Mas aquilo era notícia. Assim como mais tarde foram os Macintosh coloridos, o primeiro iPod…
Foi uma angústia convencer a Santíssima Trindade da revista, representada por editor-executivo, redator-chefe e diretor de redação, de que uma empresa chamada Microsoft estava lançando as bases de uma revolução chamada computação pessoal. Eu questionava: “se essa notícia é boa para o New York Times, por que não seria para VEJA”. Não era.
Jurei que pediria demissão na segunda-feira seguinte. Tínhamos um mantra na redação: jamais pedir demissão entre quinta e sexta-feira, com os nervos à flor da pele, no calor do fechamento exaustivo, física e emocionalmente desgastante, da maior revista do país.
Experiência dantesca, muitas vezes. Nessa noite foi. Insisti tanto, discuti tanto, argumentei tanto que a Santíssima Trindade, na figura do redator-chefe, me concedeu uma módica coluna! Tipo: “toma essa tripinha de texto aqui e vê se não reclama da migalha, tá, filhinha?” Então tá. Contei ao leitor o que era possível. É do jogo.
Por punição pela insubordinação, minha matéria foi a última a ser liberada para a checagem e a gráfica. Aqueles dois ou três parágrafos me fizeram esperar até a madrugada. Amanhecia quando voltei para casa, e tive de colocar óculos de sol para dirigir, coisa que sempre me deixou deprimida.
Ver aquela gente toda no trânsito, de banho tomado, se dirigindo para o trabalho depois de uma noite de sono, e eu virada de véspera, num buraco na Marginal Tietê (sim, foi antes da Abril se mudar para aquele prédio com inteligência emocional, na Marginal Pinheiros), voltando da maratona de 18 horas de expediente, para retornar ao trabalho horas depois.
O segundo episódio foi uma entrevista com Bill Gates. Não sou fã de unanimidades – jamais me interessei por homens belos, prefiro os não-convencionais – mas Bill Gates é um gênio. Ponto. Goste-se ou não dele, se é gênio do bem ou do mal – tenho minha opinião –, isso são outros quinhentos. Vamos combinar que uma entrevista do homem mais rico do mundo, em rara visita ao nosso país, interessa à maior revista do país.
Pois bem, tive esse privilégio. No dia, vesti o personagem e fiz as perguntas que havia combinado com a liderança, tipo “vamos pressionar o abominável capitalista das neves”. Feito. Ao chegar de volta à redação, enquanto transformava a entrevista em formato pingue-pongue, a Santíssima Trindade direção soube que outra publicação do grupo, a arqui-rival Exame, também tivera um horário para entrevistar Bill Gates. Bastou.
Caiu a entrevista. Eu hesitava entre arrancar os cabelos, ter um colapso nervoso ou cometer homicídio doloso – sempre tive fascínio pela personagem Nikita, a bela superespiã armada até os dentes, que atirava até em mosca em suas missões secretas.
Depois de uma síncope nervosa, me deixaram publicar dois ou três parágrafos, num alto de página completamente inexpressivo, provavelmente no canto de menor leitura da revista. Até hoje não me recuperei dessa mágoa. O leitor, a quem sempre servi nesses vários anos dedicados à profissão, não contou, nem importou. Reclamei, protestei. Em vão.
O que contou foi que se o entrevistado falou com Exame, então não merecia destaque em VEJA. Por uma questão de disputa interna de poder, bateu-se o martelo: Bill Gates não interessa. Ao final, engoli o sapo e as consequências. Eu precisava pagar os boletos. Sucumbi ao que meu professor na Filosofia da USP, Renato Janine Ribeiro, talvez chamasse de falta de ética.
Não me vesti de Nikita, nem me demiti.
Algum tempo depois, a alta direção do grupo se convenceu – talvez porque tenha lido na imprensa internacional – da relevância do tema da computação pessoal. Surgiu então um projeto para desvendar esse novo membro da família, o computador. Tinha sido por vias tortas, mas a maior revista do país abria os olhos para o fenômeno da era digital. Festejei. Só que não.
Lembro ao leitor que eu havia sido contratada justamente porque nunca escrevi jargões sobre tecnologia, detesto usar nomes em inglês para aquilo que tem correspondência em língua pátria. Aprendi com gênios como Jean Paul Jacob e outros que genial é ser simples. E que falar difícil é para quem quer mostrar mais do que sabe. Afinal, sabemos, informação é poder.
Como repórter em outras publicações nacionais, eu havia me notabilizado pela cobertura de tecnologia pelo viés humano e comportamental. O que eu não sabia era que nada disso importava. Por obra do destino, eu fazia parte da facção de poder oposta à liderança que editava o caderno especial. Oooi?
Foi uma luta interna. Foi preciso uma força tarefa até que finalmente fui convocada para fazer parte da equipe que contaria ao leitor da maior revista do país que uma revolução já ocorria por aqui. Chamava-se supervia da informação e era a rede mundial de computadores.
Durante muito tempo, eu era a única a ter acesso à internet na maior revista da América Latina. Sempre estive no olho do furacão, no meio do movimento de inovação brasileira, mas isso não bastava. Porque quem havia me contratado era alguém politicamente oposto à liderança do projeto.
Agora o ápice da arrogância se deu no último episódio que quero contar. Havia uma rivalidade monstro entre VEJA e Exame, o braço de publicações de negócios do grupo. Remando contra a maré, na ocasião a diretoria da Abril cedia à Folha de S. Paulo a gestão do portal online do Grupo Abril, o BOL.
Na negociação, passou-se a perna no gestor que durante um longo período liderou a Exame. Coube a mim falar pessoalmente com o derrotado. Lembro-me da alegria e do entusiasmo com que me pediram para ouvi-lo. Parecia a queda da Bastilha e eu perguntando para Maria Antonieta: “Vem cá, o que você tem a dizer após essa homérica puxada de tapete, às vésperas de perder o pescoço na guilhotina?”
Desconheço os dilemas internos da operação. Apenas me perguntava por que a Santíssima Trindade de VEJA estava tão feliz. Não percebiam que a Abril começava a dar um tiro no pé ao entregar de bandeja o portal online da Abril, o BOL, que passava às mãos da Folha de S. Paulo, em uma mal explicada fusão com o Universo On line?
O alto escalão festejava a derrocada da iniciativa digital do grupo. Me olhavam à distância, rindo da desgraça do rival, que havia sido meu gestor na Info Exame, a revista do próprio grupo, e que reunia um celeiro de profissionais inovadores de primeira grandeza, entre jornalistas, engenheiros, programadores, designers e animadores. A começar do maior de todos eles, Carlos Machado, o editor de fato da principal revista de computação do país, e que, por ser negro, nunca combinou com a diretoria monocromática do maior império editorial que já tivemos no país.
Era como se tecnologia fosse coisa pouco séria. Me lembro da tortura que foi argumentar que internet não era coisa de nerd, de sujos&feios&gordos sem noção que não conseguiam namorar e se escondiam por trás de uma tela.
Jornalistas digitais sempre ocuparam a periferia das redações. Não era diferente na maior revista do país. Aliás, não foi diferente no jornal Folha de S. Paulo, no desprestigiado setor de suplementos, onde ficava o caderno de Informática e onde comecei a escrever sobre negócios digitais. Era uma publicação com muitos anunciantes, e pouco ou nenhum prestígio durante muito, muito tempo.
Como acredito que todo o progresso depende da capacidade de indignação e da não aceitação do razoável, remar contra a corrente tem seu valor. Certa vez consegui autorização para fazer uma reportagem sobre brinquedos tecnológicos. Eu queria falar sobre o fenômeno do consumo de entretenimento digital em VEJA. Era época do tamagotchi, bichinho de estimação que comia, dormia, defecava e precisava de banho, tudo na tela.
Na redação da maior revista do país, as divisórias entre as editorias pareciam muros de Berlim. Intransponíveis. Ninguém se falava, mal se cumprimentavam os repórteres de Economia e os de Geral, que se sentavam lado a lado. Nessa noite, me lembro de ver sorrir muita gente que eu não sabia sequer se dentes tinha.
Peguei meu próprio talão de cheques, escolhi um mundo de traquitanas incríveis, dei um cheque caução, e carreguei comigo até a redação uma infinidade de brinquedinhos high tech. Jocosamente, meus colegas de VEJA apelidaram de playcenter o espaço onde ficava minha mesa.
Nunca vi algo igual. A cobra de mais de dois metros de comprimento, que eu havia trazido, logo foi parar nos ombros da diretora de arte. Elegante, chique, estilo europeu, ela passou o resto da noite enrolada na cobra, feito uma Luz Del Fuego neoclássica. Desenhou a revista inteira assim. Linda.
A espingarda de dardos de espuma que eu havia trazido fez tamanho sucesso na redação de VEJA, que tive de devolver à loja sem alguns petardos de algodão. Perderam-se entre as mesas durante a guerra que uma editoria fazia contra a outra, a metros de distância. Eu dizia: “gente, vocês não tiveram infância”. Divertiram-se. Foi incrível aquele dia.
Talvez não seja prerrogativa apenas de jornalistas, mas humanos temos certa dificuldade em olhar para as nossas sombras. Nesse momento de profundas mudanças trazidas pela era digital, transformação é a palavra do momento. E transformar significa mudar de estilo.
Por isso, investigar nossos intestinos e soltar as amarras desse passado de arrogância e falta de visão estratégica talvez seja a grande esperança para que profissionais de comunicação se juntem aos de artes visuais, a programadores, engenheiros e jovens estudantes para criarmos, juntos, não grandes artigos, mas textos para se ler no elevador ou na promoção de pasta de dentes.
É a uberização da mídia, dizem uns. De qualquer modo, não podemos fechar os olhos para a nova realidade. O jornalismo mudou. Os grandes grupos de comunicação internacional já experimentam o jornalismo imersivo, com experiências em realidade virtual, aumentada, 360 graus. Tudo isso chegou a partir do entretenimento. É questão de tempo até que se espalhe por todas as esferas da vida em sociedade.
Foi assim com cada uma das inovações recentes. É assim hoje. E isso funciona como nunca em um mundo complexo, incerto e em mudança veloz como hoje. É preciso investigar que futuro desejamos e sonhamos.
Apaixonada por poesia, e por Augusto dos Anjos em particular, eu tinha grudado na parede os Versos íntimos, que diziam:
“Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera”
Está na hora de discutir o futuro, como fez a consultoria KPMG, em seu #kpmgofuturodamidia. Essa, aliás, é a proposta dos encontros promovidos pelo mais antigo portal de sustentabilidade do país, a Envolverde, em parceria com a Apjor, Associação Profissão Jornalista. Uma dessas rodas de conversa acontece na próxima quinta-feira, dia 30 de agosto, entre 10h e 13h, no Unibes Cultural, que fica ao lado da estação Sumaré do metrô.
Vale a pena discutir esse futuro no presente. (#Envolverde)
*Darlene Menconi – Produtora de conteúdo multiplataforma em Tecnologia, Meio Ambiente e Liderança Feminina