Quando dona Sônia entra na sala, minha garganta dá um nó. A semelhança entre ela e a filha é impressionante. Por vezes, durante nossas conversas, tenho a sensação de que é a própria Eliza Samudio, mais velha, quem relembra a barbárie a que foi submetida por ter tido “a audácia” de engravidar de um encontro sexual casual com um jogador de futebol famoso.
Mas não é só fisicamente que Sônia e Eliza se parecem. Também as histórias de violências sofridas por mãe e filha se encontram em muitos momentos. “A diferença é que eu fugi e fiquei viva e a minha filha enfrentou e morreu”, diz Sônia, tentando secar as lágrimas que teimam em cair, quase sete anos depois do assassinato da filha.
Na época, o crime ganhou muita atenção da mídia e da sociedade, um tanto por causa das personagens – um jogador de futebol famoso, goleiro titular do Flamengo, uma modelo, fã de futebol que havia participado de filmes adultos, um amigo obcecado, um ex-policial sanguinário, ex-esposas e namoradas – e outro tanto pela crueldade do crime: sequestro, assassinato a sangue-frio e ocultação do corpo, provavelmente esquartejado e jogado aos cães do executor, segundo o depoimento de Jorge Luiz Rosa, primo de Bruno e principal testemunha do caso. A opinião pública se dividiu entre os que achavam que Eliza não passava de uma “Maria chuteira”, uma atriz de filmes pornôs que só queria se aproveitar da fama e do dinheiro do “talentoso jogador” e, portanto, “merecia” morrer; e os que viram em Bruno um “monstro”, um “assassino de sangue-frio”, alguém à margem da sociedade. Não se tocou na palavra exata para descrever o crime: feminicídio. É esse o nome do assassinato de mulheres em contextos marcados por desigualdade de gênero, considerado crime hediondo no Brasil desde 2015. Por dia no país acontece um feminicídio a cada 90 minutos, 5 espancamentos de mulheres a cada 2 minutos e 179 relatos de agressão. Esses dados estão compilados, com definições, informações e análises importantes, no livro Feminicídio #invisibilidademata, lançado no último dia 30 pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo.
Quando Bruno foi solto por uma liminar concedida no habeas corpus 139612 pelo ministro do STF Marco Aurélio –, dona Sônia assistiu estarrecida às cenas do assassino de sua filha posando para fotos com fãs e dando entrevistas sorridentes a repórteres que evitavam perguntas desagradáveis. O assunto era futebol: ele havia sido contratado pelo time de futebol Boa Esporte Clube, de Minas Gerais (que está pagando um alto preço pela aquisição). Nenhuma pergunta sobre o crime que levou a filha dessa mulher pequena e magra que desde então tem perdido peso, noites de sono e até a concentração para fazer os doces e salgados que vende para complementar a renda da família: “Eu emagreci 27 quilos na época [desaparecimento e morte de Eliza], mas consegui recuperar 16 com tratamento. Essa semana emagreci mais três. Volta tudo, não estou conseguindo dormir nem trabalhar”, conta.
Enquanto vemos fotos antigas no sofá da casa de sua comadre, ela diz também temer por sua vida e a do neto. Conta que recebe ligações no meio da madrugada, vindas de números desconhecidos, e vê carros estranhos passeando por seu bairro. Lembra que na época do julgamento recebia ligações dizendo que um rolo compressor iria passar sobre sua cabeça, que era para ela desistir do processo, pra não medir forças. “Mas minha maior preocupação hoje é com o Bruninho”, diz, referindo-se ao filho de Eliza e Bruno, que ironicamente herdou o nome do pai.
Sônia cuida do neto desde a morte da filha, tentando protegê-lo da própria história para salvar sua infância. Por segurança, nossos dois encontros ocorreram longe do menino e de sua casa. “Quando ele [Bruno] diz que 300 anos em prisão perpétua não vai trazer a vítima de volta, minha filha é essa vítima, assassinada, dada aos cães. Eu não pude enterrar seu corpo, não sei se isso vai me ser dado um dia, se a Justiça vai conseguir fazer eles falarem o que fizeram com o corpo da minha filha. Mas meu neto vai ter que viver com essa dúvida também? Se pra mim é difícil, imagino pra ele. Porque na vida dele existe um peso a mais: foi o pai que matou a mãe. Eu tento proteger sua inocência e sua infância, mostro foto da mãe, digo que ela virou uma estrela no céu, em casa a gente não liga a televisão, ele tem contato com poucas pessoas. Mas em algum ponto ele vai saber o que aconteceu e eu temo por esse momento.”
Isso tudo a mãe de Eliza tem dito à imprensa. O que ela raramente conta é que, assim como aconteceu à filha, seu companheiro também queria que ela abortasse de Eliza. Foi contra Bruno que a filha registrou um boletim de ocorrência no dia 13 de outubro de 2009 dizendo que, além de sofrer ameaças, confinamento e agressão – comprovada em exame de corpo de delito –, ele a obrigou a engolir vários comprimidos para abortar. Eliza pediu medida protetiva para ela, sua família e amigos e gravou esse vídeo assustador em que praticamente anuncia sua morte, incluindo nomes de alguns de seus futuros algozes. Nem a mãe nem ela tiveram ajuda efetiva do Estado, da polícia ou da Justiça.
O pedido de medida cautelar de Eliza foi negado pela juíza titular Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas. Segundo essa reportagem do jornal O Globo, a juíza disse que Eliza, por não manter nenhum tipo de relação afetiva, familiar ou doméstica com o jogador, não podia se beneficiar das medidas protetivas nem “tentar punir o agressor”, “sob pena de banalizar a finalidade da Lei Maria da Penha”. A denúncia de Eliza ficou parada na Justiça, assim como o processo com o pedido de alimentos gravídicos e posteriormente de pensão para o filho. A contestação de Bruno à ação de alimentos movida por Eliza diz coisas como “a autora já vinha tentando manter relações com atletas de futebol profissionais há muito tempo provavelmente com objetivos financeiros”; “a autora manteve relação sexual com o réu na primeira vez em que se conheceram […], o que pode revelar sua conduta nada reservada. Se assim fez com o réu provavelmente faz e fazia com outros homens”; “na época dos fatos narrados na inicial, ao contrário do que expôs na inicial, a autora trabalhava em filmes pornográficos de baixíssimo nível”. Também diz no documento que a denúncia a respeito da tentativa de aborto é “mirabolante” e que “o réu acredita que a autora possa ter ingerido tais comprimidos por ter certeza que o filho que espera não é dele”.
Como a filha, dona Sônia poderia ter entrado para a estatística caso não tivesse fugido de seu agressor de Foz do Iguaçu para o Mato Grosso do Sul. “A imprensa, as pessoas e até mesmo o próprio Bruno me julgam muito, dizendo que eu não criei a minha filha e que eu choro lágrimas de crocodilo na frente das câmeras, mas ninguém sabe da minha história, ninguém sabe o que eu passei. O pai da Eliza era violento, eu fugi dele pra não morrer” diz. Ela conta que foi morar com Luiz Carlos Samudio ainda muito jovem, aos 17 anos, e que, além da insistência pelo aborto que ela não fez, as agressões continuaram até que, quando Eliza tinha por volta de 4 anos, não aguentou mais e fugiu, pensando em arrumar um trabalho, se estabelecer e então buscar a filha pra viver com ela. Durante esse tempo, pediu a familiares para que cuidassem da menina e ia vê-la escondida sempre que podia, com medo do ex-marido. “Quando eu já estava melhor, fui pegar a Eliza pra morar definitivamente comigo. O pai dela, então, me disse que me entregaria ela, mas me entregaria aos pedaços.” Nessa hora, dona Sônia não consegue mais conter o choro. “É difícil pra uma mãe, sabe? Fazer uma escolha dessas.” A amiga que a recebeu no Mato Grosso, cujo nome vamos preservar, diz: “Se você soubesse o jeito que ela chegou aqui… Machucada, com medo, mal falava”.
Para Eliza, a infância também não foi fácil. Seu pai, com quem morou a maior parte da vida, está foragido da Justiça desde que sua prisão provisória foi expedida em 12 de maio de 2011, em processo que responde por abuso sexual contra a filha caçula, na época com 10 anos. A condenação, por oito anos de prisão em regime fechado, ocorreu em 2005, foi contestada e teve recurso negado pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Dona Sônia suspeita que Eliza também possa ter sofrido abuso do pai, já que a filha pediu para se mudar para a casa dela no Mato Grosso quando tinha 14 anos sem dar muitas explicações e sem querer falar com o pai. Mas aos 16, diante da insistência de Luiz Carlos e das promessas de que faria um book e a colocaria em contato com agências – o sonho de Eliza desde menina era ser modelo –, ela acabou voltando para Foz do Iguaçu e depois fugiu para São Paulo, sozinha, aos 18 anos, sem que nenhum dos dois soubesse de seu paradeiro por quase um ano.
O estupro de crianças e adolescentes por pais e parentes próximos também não é raro. Levantamento do Ipea, feito com base nos dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), mostrou que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. Segundo a mesma pesquisa, 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2%, amigos ou conhecidos da vítima.
Quando Eliza se envolveu com Bruno, dona Sônia não ficou sabendo. As duas se falavam apenas por telefone e a filha seguia sua vida morando na casa de amigas em São Paulo e, depois da gravidez, se dividia entre São Paulo e Rio de Janeiro, em hotéis pagos por Bruno, reivindicando os direitos do filho que carregava no ventre, em uma negociação conturbada. “Ela estava desempregada, queria proteger o filho. Diziam que ela era culpada da própria morte por ter feito as coisas, os filmes. Se a mulher arruma um amante é vagabunda, mereceu. Se o homem arruma amante é pegador”, diz dona Sônia.
Uma a cada três mulheres sofre violência de gênero
A médica e professora do departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP Ana Flávia d’Oliveira participou da pesquisa que deu base ao livro Feminicídio #invisibilidade mata. Ela falou à Pública sobre como as histórias de Eliza e Sônia se relacionam com a violência de gênero cotidiana.
“Uma em três mulheres já sofreu ou ainda vai sofrer algum tipo de violência física ou sexual no mundo, 50% delas por parceiros. Por isso, a violência a que Eliza e sua mãe foram submetidas, infelizmente, não me surpreende. 30% da população é muita coisa. Dessa violência, a maior parte é grave – e o que a gente considera grave nas nossas pesquisas com a OMS é quando tem agressão física de soco em diante. Estrangulamento, ameaça com arma de fogo ou arma branca. E essa violência é preocupante tanto pela gravidade dos episódios quanto por sua continuidade; ela é cotidiana. Acho que nesse caso da Eliza especialmente, ficam evidenciados questões de gênero e o controle da sexualidade feminina. Porque a sexualidade feminina continua sendo legitimada apenas dentro de um casamento monogâmico e todas as formas de expressão que saiam desse padrão ainda são estigmatizadas pela sociedade. Isso se expressa claramente quando a juíza não deu para ela a medida protetiva pelo fato de não ter uma relação estável com o pai do filho, por exemplo. Acho que, quando mãe e filha são coagidas ao aborto, isso mostra a dificuldade que ainda temos em obter direitos sexuais e reprodutivos e como isso também está ligado com a violência. Temos ou homem que quer forçar a mulher a interromper a gravidez ou o que quer forçar a mulher a ter o filho, em uma sociedade em que o encargo da reprodução segue majoritariamente das mulheres. Uma mãe, por exemplo, que abandona um relacionamento abusivo e não consegue levar as crianças porque não é fácil, como foi o caso de Sônia, perde a legitimidade social sobre aquelas crianças. Um pai que abandona os filhos porque não quer mais é cobrado muito pouco ou nem é cobrado. Eu acho que de fato tratar esse crime como exceção e tratar esse sujeito como um monstro é uma tentativa de tirá-lo fora da sociedade, desumanizá-lo e não perceber que ele faz parte de nós e que, em graus maiores ou menores, essa violência acontece cotidianamente em uma parte enorme das famílias. A morte da Eliza diz o que pode acontecer com as mulheres que correm atrás dos seus direitos. Esses casos, quando se tornam públicos, surtem um efeito terrível! Eu atendo mulheres em situação de violência e elas dizem ‘mas não adianta ir pra Defensoria, ir pra delegacia. Você viu o que aconteceu com fulana?’. Toda a publicidade desse caso, cada caso em que a mulher morre por fugir de uma situação de violência ou em que tentou pedir pensão alimentícia calam muitas mulheres por medo. E não é um medo irracional. Mesmo o fato de ele ter sido solto é muito complexo. Se ela ganhava dinheiro com sexo ou não, como ela ganhava a vida ou com quantos homens ela dormiu não faz a menor diferença no seu direito a pensão e ao reconhecimento da paternidade. A única coisa que tiraria esses direitos seria se o filho não fosse dele. Como ela vivia a sexualidade é outro assunto. E ela não pode nem ser acusada de não ter ido atrás dos seus direitos porque fez B.O., pediu medida protetiva, pediu pensão alimentícia, acionou os mecanismos legais. Esse caso é de uma injustiça extrema e choca principalmente pelo que fizeram com o corpo, mas, quando fizeram aquela barbaridade, ela já estava morta. O que me choca é a decisão de matá-la, e a decisão de matar é a decisão cotidiana de um monte de homens! Alguns conseguem e outros não.”
Após registrar o B.O. em outubro de 2009, Eliza voltou para São Paulo. Não compareceria à audiência da ação de alimentos por estar com 39 semanas de gravidez, com medo e sem dinheiro para se locomover, como explica em e-mail enviado à sua advogada (confira abaixo).
Alguns meses depois, em meados de julho de 2010, a imprensa falaria de seu sumiço e passaria a revelar os detalhes sórdidos de sua morte. Dona Sônia saberia da morte de Eliza pela televisão, em uma cena emblemática: seu ex-marido, aquele de quem fugiu e que ela achava que estava morto, segurava seu neto, que até então não conhecia, no colo. “Fiquei sabendo da morte da minha filha, do nascimento do meu neto, que meu ex-marido estava vivo e com o bebê tudo ao mesmo tempo. Fiquei sem chão”, lembra. Quando soube da morte da filha, Luiz Carlos, que até então ainda recorria do processo, se apresentou como familiar do bebê. “No último telefonema de Eliza, ela dizia que tinha uma coisa pra me contar e eu sempre brincava: ‘Ó tá chegando meu neto!’. Ela dizia: ‘Mãe, quando eu tiver um filho, eu mato e morro, mas não deixo meu filho pra trás’. Isso toda vida ela falou. Então, quando a Elisa sumiu, eu tinha certeza que ela estava morta.” Quando soube do neto, Sônia criou a coragem que nunca teve e pediu para a advogada entrar com o pedido de guarda de Bruninho. “Ele [Luiz Carlos] achava que eu nunca teria coragem de enfrentá-lo, mas eu tive. Antes eu não teria. Mas hoje estou mais forte. Fomos pra Foz do Iguaçu eu e a Dra. Maria Lúcia e entramos com o pedido. Quando o Bruninho chegou, eu fui por trás da pessoa que estava carregando ele e levantei assim o cobertor da carinha dele. Ele abriu um baita sorriso. Daí peguei ele no colo e ele se aninhou, esfregou a cabecinha em mim, foi um momento meu, sabe?”, lembra emocionada. “Meu neto poderia ter morrido três vezes. A primeira ainda no útero da mãe. A segunda quando levaram Eliza pra morte e iam matar ele também, mas ficaram com dó. E a terceira quando deixaram ele em Minas com desconhecidos. Quando a polícia o encontrou, ele estava sujo, com fome. Se não tivessem encontrado, será que ele estaria aqui?”, pergunta. Para o futuro, a mãe de Eliza diz que quer duas coisas: cuidar do neto em paz e um dia poder enterrar os restos mortais da filha. Se os assassinos de Eliza um dia confessarão o paradeiro do corpo não é possível dizer. Certo é que a violência, as torturas físicas e psicológicas, a condenação pela opinião pública e pela própria imprensa e, por fim, o assassinato brutal de Eliza Samudio não se deram apenas nesse caso.
Bruno não é um monstro nem se aproxima da exceção, ao contrário do que seria muito mais confortável acreditar. Ou, como diz a psicanalista Maria Silvia Bolguese: “A modelo, o jogador de futebol, são lugares cristalizados na sociedade, quase clichês. E eles foram atores que não conseguiram escapar de um tipo de lógica que funciona muito na base da violência e da opressão. A história da Eliza e do Bruno é horrível socialmente também porque é a repetição de 1 milhão de histórias iguais, mas tem o desserviço de ser uma história pública que a sociedade não quer analisar de jeito nenhum. Vai-se tentando pôr para fora, à margem, fazendo deles outros, quando na verdade eles são caricaturas, ampliações. Esse caso é um tapa na cara da sociedade”. (#Envolverde/ Agência Pública)