Por De Olho nos Ruralistas –
Um dos criadores do Fome Zero, ele aponta falta de articulação do governo federal para combater a fome em meio ao coronavírus e à crise econômica; o ex-diretor do órgão das Nações Unidas aponta risco de colapso no sistema de abastecimento de alimentos
Em plena pandemia, a desmobilização do combate à fome nos últimos cinco anos pode cobrar um preço alto. Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, o ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, alerta que o país pode voltar ao Mapa da Fome mundial já em 2020. As medidas para evitar esta tragédia, diz ele, passam necessariamente pelo governo federal.
Cenário: a gestão de Jair Bolsonaro desmontou estruturas de abastecimento e fomento de cooperativas de pequenos agricultores. Uma das principais ferramentas à disposição do governo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ponte entre a agricultura camponesa e aqueles que passam fome. Os recursos do programa estão em queda livre há anos. Se em 2012 o governo investiu R$ 1,2 bilhão no PAA, em 2019 o valor caiu para menos de um sexto, R$ 188 milhões, informou O Joio e o Trigo. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que negocia a injeção de R$ 500 milhões no PAA e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), mas não deu prazo para a chegada dos recursos.
O desmonte foi analisado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Para a equipe do Ipea, a queda do PAA ocorreu pela “diminuição gradativa dos recursos investidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário”. Rebaixado ao status de secretaria, a pasta “teve seu orçamento bastante reduzido, restringindo-se a pequenas execuções de formação de estoque”, diz a equipe do instituto.
O esvaziamento dos estoques públicos é outro problema grave, segundo o ex-diretor-geral da FAO. Os alimentos comprados via PAA são também destinados a estoques públicos, estratégicos em momentos excepcionais, como a pandemia do novo coronavírus. Bem supridos, viram ferramentas para que governos estaduais e municipais alimentem populações carentes e abasteçam regiões vulneráveis.
A Companhia Nacional de Abastecimento também entrou na mira das privatizações desde janeiro de 2019. Com a benção de Tereza Cristina, o então presidente da Conab, Newton Araújo Silva Júnior, anunciou a desativação e venda de 27 armazéns, quase um terço do total em todo o país — incluindo regiões centrais, estratégicas para o abastecimento em diversos estados. “O governo tem de assegurar que as cidades formem um mínimo de estoques de emergência, evitando uma especulação desenfreada nos produtos da cesta básica”, diz Graziano.
Ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, o brasileiro comandou a FAO entre 2012 e 2019. José Graziano da Silva é um dos criadores do Fome Zero, iniciativa reconhecida mundialmente.
Confira a entrevista concedida por ele a Caio de Freitas Paes.
De Olho nos Ruralistas — Pode-se dizer que o Brasil está mais vulnerável à fome durante a pandemia? Qual o risco de voltarmos ao Mapa da Fome?
José Graziano da Silva — Com certeza. A pandemia hoje é um risco: a única medida eficaz que se teve até agora, o isolamento social, faz com que a pandemia ameace o sistema alimentar do país. É um risco verdadeiro, não pode ser negligenciado, porque há iminência de cortes no abastecimento, no transporte entre cidades e estados, e também faltam mecanismos eficientes para se promover um maior uso de feiras livres, feiras do agricultor, entre outros. São eles que asseguram um fluxo contínuo de produtos frescos — frutas, verduras e legumes — para as cidades. Sem articulação, pode aumentar o problema da fome no país.
Antes da pandemia, quando ainda estava na FAO, fizemos um cálculo que apontava que, se não houvesse reversão da tendência, voltaríamos ao Mapa da Fome. O aumento do desemprego em função da crise e a redução dos programas sociais — vista no aumento da fila do Bolsa Família — poderiam trazer a fome de volta ao país. Nossos cálculos sugeriam que provavelmente o Brasil voltaria ao Mapa da Fome ao fim de 2021. Mas com a recessão mundial, acentua-se a perspectiva de um crescimento nulo ou mesmo decréscimo neste ano de 2020. Se isso acontecer, sem que haja qualquer ação pra recuperar os investimentos em programas sociais, o Brasil corre o risco de voltar [ao Mapa da Fome] já no fim desse ano.
Temos passado por um desmonte da estrutura de combate à fome no Brasil, com a extinção de conselhos como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), falta de diretrizes no combate à insegurança alimentar em Planos Plurianuais do governo, corte de recursos de pastas estratégicas. Quais as consequências em meio à pandemia?
O maior impacto é a falta de coordenação na política de segurança alimentar, que exige ampla interlocução entre diferentes ministérios. Um exemplo é a desarticulação entre o Ministério da Agricultura e o da Saúde: cada um conduz suas políticas específicas, mas falta um entrosamento de governo para articular ambos. Isso poderia ser assegurado pelo Consea, por exemplo, onde poderiam ser ouvidos representantes da sociedade civil, empresários, representantes de ministérios setoriais [nota: o conselho foi extinto pelo governo Bolsonaro]. Cada um tem olhado apenas para as próprias políticas, e a falta de coordenação nas ações é fundamental.
“Inclusão de Conab na lista de privatizações do governo indica falta de prioridade para a segurança alimentar.”
Qual o atual impacto da sucessiva desidratação de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)?
Todo o desmonte da política de segurança alimentar já vinha se refletindo num aumento da insegurança alimentar da população mais carente, principalmente na região Nordeste. E não apenas o PAA, que é vital, está sendo desidratado: o fato de a Conab, organização-mãe que articula o programa, estar na lista de privatizações do governo já indica a falta de prioridade ao tema.
Quais regiões inspiram maior preocupação em relação à insegurança alimentar durante a pandemia?
Temos de atuar fortemente em regiões periféricas no âmbito nacional, como Nordeste e Amazônia, e também no âmbito estadual, como pequenas e médias cidades. É aí que temos uma grande preocupação com o colapso do sistema de alimentos. Isso, claro, sem contar as periferias de centros urbanos, mais expostas não apenas à pandemia em si, mas também aos efeitos de um possível colapso do sistema de abastecimento de alimentos.
Não é segredo que o atual governo privilegia o agronegócio em detrimento da agricultura camponesa. Quais as consequências dessa escolha, agora?
Até o momento, tenho visto uma dificuldade crescente dos agricultores familiares de entregarem seus produtos. Há um corte nos canais de abastecimento dos produtos frescos, porque feiras livres e mercados diretos foram reduzidos em meio ao controle social. Já há notícias de agricultores jogando fora frutas, legumes e verduras, sem contar outros perecíveis, como o leite. Sem apoio para o escoamento, podemos ter uma total desarticulação da pequena produção familiar, é muito preocupante. São eles que provêm grande parte dos alimentos que consumimos nas cidades.
“Governo precisa proibir a especulação do preço dos alimentos. Quem vai às compras não pode entrar em pânico.”
Quais ações o governo federal precisa tomar, o quanto antes, para combater a fome? Como avalia a resposta da atual gestão diante desse problema, especialmente neste momento de pandemia?
Há uma lista de ações fundamentais. A mais importante é combater e proibir a especulação no preço dos produtos alimentícios. Temos de evitar o pânico generalizado das pessoas que vão às compras: elas não podem formar estoques de comida, como fizeram com as máscaras e o álcool-gel, senão o sistema de fornecimento de alimentos não vai resistir. Precisamos de um controle da especulação por meio de organismos de defesa do consumidor, de fiscalização de preços. Já está ocorrendo algo do gênero com o feijão. Estamos em plena safra e o preço disparou, não há nenhuma razão para tal. O governo tomou uma medida importante nessa linha em relação aos produtos farmacêuticos. Deveria agir da mesma forma em relação aos produtos da cesta básica. Não se trata de congelamento de preços, mas de acompanhar, fiscalizar, inspecionar.
Também é fundamental fazer da cidade o centro da política de segurança alimentar nessa pandemia. Temos de fortalecer ações em nível local: é ali que as pessoas estão confinadas, onde moram e onde têm de comer. Há uma série de medidas e programas específicos para fortalecer seu papel no abastecimento alimentar, e elas têm de ser colocadas em prática.
Há ainda duas medidas fundamentais em nível federal. Primeira: tem de manter a merenda escolar funcionando. Sem ela, corremos o risco de nossas crianças passarem fome, literalmente. Sabemos que há muitos que vão à escola para comer, é lá que têm a única refeição do dia — especialmente famílias mais pobres. Manter a merenda por meio de compras da agricultura familiar é uma medida imprescindível [nota: o Congresso aprovou a distribuição de alimentos da merenda escolar a pais e responsáveis durante a pandemia; a lei ainda precisa ser sancionada pela Presidência da República].
Além disso, tem de manter o PAA em suas mais diversas modalidades. Estamos em plena safra nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, por exemplo. Há de se manter o PAA e seus similares, como é o caso da opção de compra e doação simultânea, que faz o produto ficar no local onde foi comprado. Ter alimentos disponíveis nas cidades é um elemento essencial para combater a fome na epidemia. O governo tem de assegurar que as cidades formem um mínimo de estoques de emergência, evitando uma especulação desenfreada nos produtos da cesta básica.
Foto principal: Graziano durante evento da FAO em Roma, em 2011. (Divulgação/FAO)
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