por Peter Speetjens, Mongabay –
Em novembro de 2019, um grupo de ruralistas invadiu a plenária onde se realizava a abertura do encontro Amazônia Centro do Mundo, em Altamira, no Pará. Alguns portavam armas. Seu objetivo era tumultuar o evento e impedir a todo custo que os líderes indígenas, pesquisadores e ambientalistas ali presentes compartilhassem suas ideias para o futuro da floresta.
A certa altura, uma jovem indígena se levantou, pegou o microfone e fez um apelo aos ruralistas, incitando-os a lutar também pela defesa da Amazônia. “Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya”, escreveu a jornalista Eliane Brum em reportagem do El País na ocasião.
“Foi muito tenso”, lembra Juma, ao conversar com a Mongabay em frente à Universidade Federal do Pará, em Altamira, onde estuda Medicina. “Quando eu estava prestes a falar, um homem se aproximou e disse, gritando, que todos nós merecemos morrer. Ao final da conferência, do lado de fora, um grandalhão gritava: ‘Índios não existem!’ A polícia estava lá, mas não fez nada.”
Até aí, nenhuma novidade para Juma, íntima do perigo desde que se tornou uma das principais vozes indígenas contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Foram muitas ameaças de morte a partir de então, inclusive uma tentativa de assassinato à qual por pouco não escapou.
“Hoje só ando algumas centenas de metros, entre a minha casa e a universidade. E nunca ando sozinha”, diz ela. “Quase não tenho uma vida social. Só quando eu volto para a minha aldeia.”
Cacica aos 24 anos
Juma nasceu em 1991 na aldeia Tukamã, uma pequena comunidade Xipaya à beira do Rio Iriri, a cerca de 400 quilômetros a oeste de Altamira. Ainda adolescente se envolveu com a resistência à construção de Belo Monte: antes de completar 18 anos, juntou-se ao crescente movimento Xingu Forever, que lutava pelos direitos dos indígenas impactados pela usina.
Foi sua jovem força combativa que levou os moradores de Tukamã, em 2015, a nomearem Juma cacica da aldeia — aos 24 anos, ela se tornou a primeira mulher a liderar uma comunidade Xipaya.
O cargo lhe deu ainda mais força para esquadrinhar os diversos planos apresentados pela Norte Energia, o consórcio de empresas responsável pela construção e operação de Belo Monte. Certa de que muitos dos direitos indígenas estavam sendo violados e vendo muitas demandas sendo ignoradas, Juma procurou se reunir com outras lideranças na busca de uma solução comum. Em vão.
“É triste dizer, mas nunca houve um movimento indígena unido contra Belo Monte”, diz Juma. “Desde o início, a Norte Energia focou na divisão. E conseguiu. Muitos líderes [indígenas] receberam carros e barcos e se esqueceram de outras coisas, como saúde e educação. Com os carros, eles podiam ir à cidade [de Altamira] para beber e festejar. Acredito que este foi o primeiro passo em um processo deliberado de destruição de nossa cultura.”
À Mongabay, a Norte Energia disse que representantes indígenas foram consultados desde a concepção do projeto da usina e que continuam sendo ouvidos. Segundo a empresa, foram implementadas “medidas de indenização e compensação nas aldeias indígenas do Médio Xingu”, entre elas “a construção de 40 casas de farinha, 779 residências, 354 módulos sanitários, implantação de 29 sistemas de abastecimento de água e a implantação do Plano de Proteção Territorial que conta com 8 Unidades de Proteção Territorial”.
De acordo com Juma, porém, os povos indígenas da Bacia do Xingu nunca foram consultados ou informados adequadamente sobre os impactos de Belo Monte, conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Em vez disso, as negociações focaram na obtenção de benefícios. A empresa os chamou de “presentes”; os críticos os chamam de “suborno”. O resultado: ciúme, suspeita e divisão entre as comunidades.
Antes da construção da barragem, havia 11 comunidades indígenas na região do Médio Xingu. Hoje, existem mais de 80. Segundo Juma, toda vez que alguém discorda de outra pessoa, ele e seus seguidores deixam a comunidade para estabelecer um novo acordo e buscar benefícios da empresa.
“Em 2012, a Norte Energia introduziu um plano de emergência, que na verdade era apenas uma lista de mercadorias para as pessoas preencherem”, diz Juma. “Elas receberam fogões, geladeiras, tevês e toneladas de itens alimentares. Atualmente, a maioria de nossas casas é feita de tijolo e cimento. A maioria das pessoas come alimentos industriais, como macarrão instantâneo, e bebe refrigerantes. Como resultado, agora temos tudo o que não tínhamos há dez anos: diabetes, colesterol alto, câncer, obesidade”.
Em uma década, foi-se o modo de vida baseado na pesca no Rio Iriri e na coleta de frutos da floresta. “Durante a minha infância, minha vila era minha única verdade, minha única cultura”, lembra Juma. “Um mundo de liberdade, segurança e felicidade. Eu nunca poderia imaginar que uma força externa como Belo Monte mudaria tudo. ”
Descobrindo a corrupção
Em 2017, o marido de Juma tornou-se coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) em Altamira, enquanto Juma passou a chefiar o departamento de saúde indígena do município. Juntos, visitaram todas as aldeias do Médio Xingu para avaliar o estado da saúde dos moradores.
O que encontraram foi, por um lado, dezenas de queixas de novos males, trazidos pela mudança nos costumes; e, por outro, falta de atendimento básico. Todas as comunidades dependiam da Casa Saude Indigena (Casai), uma única unidade médica situadaa em Altamira, na época com capacidade para 250 leitos, mas atendendo a mais de 600 pacientes.
Segundo Juma, em 2017 a Norte Energia terceirizou a maioria dos serviços e equipamentos indígenas para outras empresas. Isso incluía segurança alimentar e assistência médica. No entanto, segundo ela, nem mesmo o mínimo que a Norte Energia havia prometido estava sendo fornecido. Mais tarde, Juma e seu marido descobriram que as empresas terceiras que haviam obtido os contratos tinham sido aquelas com o preço mais alto, e não o mais baixo, como é de praxe nos processos de licitação.
À Mongabay, a Norte Energia negou veementemente qualquer irregularidade, enfatizando que “os fornecedores são contratados conforme critérios de capacidade técnica, qualidade e preços — como determina a governança da empresa e como é de conhecimento das lideranças indígenas que acompanham o processo.”
Segundo o porta-voz da empresa, 31 unidades básicas de saúde foram construídas e inúmeras iniciativas foram lançadas para produzir uma variedade de alimentos e gerar renda, incluindo piscicultura, criação de pomares e cultivo de cacau, milho, pimentão, mandioca e feijão.
“As empresas terceiras estavam entre as mais caras, mas os líderes indígenas insistiram em que todas as comunidades trabalhassem com elas”, lembra Juma. “Suspeitamos que tenham sido pagos para isso. E suspeitamos que tínhamos descoberto um esquema, com o qual tanto atores públicos quanto privados lucravam. Pedimos, então, que os contratos fossem cancelados. Foi quando os problemas começaram.”
A caminhonete branca
Cerca de um ano depois de ingressar no DSEI, seu marido perdeu o emprego. “Cerca de 150 indígenas ocuparam o DSEI para pedir sua remoção”, lembra Juma. “Eles foram pagos para isso, tenho certeza.”
Pouco tempo depois, dois homens armados em uma caminhonete branca começaram a aparecer nos lugares que Juma frequentava. No início o carro ficava parado na frente depois de sua casa, depois passou a fazê-lo na entrada da universidade onde ela estudava. “Eu estava com medo, é claro, mas tentei não me sentir intimidada”, lembra Juma.
“Um dia saí da casa da minha tia em Altamira. Eu estava grávida de cinco meses e tinha dois primos e quatro crianças no carro. Chovia muito, então eu dirigi devagar. De repente, a caminhonete branca me bateu de lado. Rolamos três vezes. Foi um milagre não perder meu filho e nenhum de nós ficar gravemente ferido.” Ela apresentou queixa, mas a polícia disse que não havia muito o que fazer sem provas e que não tinham fundos para oferecer proteção.
Depois que seu filho nasceu, em junho de 2018, Juma decidiu abandonar sua posição como cacica e voltar à universidade. Uma semana após o início das aulas, a picape branca voltou a aparecer, dessa vez em frente à universidade.
“Naquele dia, eu estava no laboratório do outro lado do prédio”, ela lembra. “Alguns estudantes me avisaram e eu saí pela porta dos fundos. Na segunda semana, meu filho ficou doente e eu o levei a um médico. No meio do caminho, a caminhonete apareceu e me seguiu por todo o caminho. Mais uma vez, fui à polícia, mas novamente eles disseram que não podiam fazer nada.”
Foi quando Juma decidiu pedir ajuda a Raoni, cacique do povo Kayapó, que entrou em contato com uma organização internacional de direitos indígenas. Como resultado, Juma passou alguns meses na Suíça e apresentou queixa às Nações Unidas. No entanto, a única solução que lhe ofereceram foi a possibilidade de permanecer lá na condição de refugiada.
“Mas minha terra está aqui, minha floresta está aqui, minha família está aqui”, diz ela, com calma e coragem. “Cortar a corda me mataria. Além disso, não quero fugir. Eu não fiz nada errado. Eles fizeram. Se for preciso, prefiro morrer aqui. Com dignidade. Então voltei.”
Desde seu retorno a Altamira, Juma mantinha a cabeça baixa, sem fazer alarde. Com a conferência de novembro de 2019 e sua fala direcionada aos ruralistas, mostrou a cara novamente. O resultado: mais uma semana de observação hipervigilante da picape branca.
Mesmo afastada da linha de frente contra a corrupção, o medo, diz ela, continua. “Passei minha vida lutando pelos outros. Hoje sou mãe. Sou estudante. E tenho certeza: não quero ser a próxima Dorothy Stang.”
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