Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 17/10/2017 – A mesma justiça que existe para garantir direitos pode se converter em instrumento para violá-los e obstruir a liberdade de expressão, conforme comprovam recentes ondas de ações judiciais contra jornalistas e meios de comunicação no Brasil. O caso atual, de grande repercussão, é o da Gazeta do Povo, principal jornal de Curitiba, capital do Estado do Paraná, que sofre 48 processos por parte de juízes e promotores do Ministério Público, que reclamam indenizações pelo fato de o diário ter divulgado suas remunerações, no mês de fevereiro.
“Houve semanas em que tivemos quatro dias úteis da semana correndo de uma cidade para outra do interior do Estado, para participarmos das audiências. Acredito que no total percorremos mais de dez mil quilômetros”, contou à IPS um dos três jornalistas processados, Rogerio Galindo.
Pena semelhante sofreu Elvira Lobato, jornalista da Folha de S.Paulo, após a publicação, no dia 15 de dezembro de 2007, de sua reportagem Universal Completa 30 Anos Com Império Empresarial, sobre os negócios obscuros da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), proprietária de redes de televisão, rádio e jornais.
Lucio Flavio Pinto, premiado jornalista, que desde 1988 publica seu “Jornal Pessoal” em Belém, capital do Estado do Pará, enfrenta desde 1992 uma via crucis urdida pelo império midiático local, pertencente à família Maiorana, que interpôs 33 processos judiciais em razão das denúncias de ilegalidade contra ela.
Na Gazeta do Povo, além dos três jornalistas, três infografistas e a empresa editora do jornal respondem às ações judiciais, acusados de causar danos aos demandantes, que solicitam reparação monetária. As ações acontecem em tribunais de pequenas causas dispersos por dezenas de cidades, que tramitam causas civis que não excedam aos 40 salários mínimos.
“Com o advogado e o motorista, sete pessoas tiveram a vida profissional e familiar transtornada” de abril a junho, recordou Galindo, destacando o problema do colega Euclides Garcia, que não pôde acompanhar os últimos meses de gravidez de sua mulher. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, no dia 30 de junho, a tramitação de todos os processos, em uma decisão preliminar da juíza Rosa Weber, às vésperas do nascimento do filho de Garcia.
As ações concertadas foram originadas por uma reportagem, publicada em 15 de fevereiro pela Gazeta do Povo, revelando que juízes do Paraná receberam em 2015 remunerações que somaram R$ 527,5 mil, superando em 28% o teto correspondente. No caso dos promotores do Ministério Público paranaense a remuneração excede em 23% o máximo fixado pela Constituição para o Poder Judiciário, que é de 90,25% do que ganham os magistrados do STF.
Auxílios para diversos gastos, indenizações, abonos retroativos e outras subvenções foram somados aos salários, gerando essa distorção. “Em nenhum momento foi dito que eram remunerações ilegais, mas que acúmulos legais resultaram em somas superiores ao limite constitucional”, explicou à IPS o diretor de redação do jornal, Leonardo Mendes Júnior.
Os dados divulgados são públicos no Portal da Transparência, do governo. O que os jornalistas fizeram foi vinculá-los ao contexto legal e destacar que o poder judicial e seus órgãos associados custam no Brasil 1,8% do produto interno bruto, contra 0,4% na Europa. Mas o “conteúdo ofensivo” da publicação sugere a existência de ilegalidades e provocou questionamentos aos juízes, afirmou a Associação dos Magistrados do Paraná, em um comunicado no qual nega ter concertado ações individuais de seus membros e que estas atentem contra a liberdade de imprensa.
O fato, porém, é que obrigar os acusados a uma peregrinação por dezenas de cidades, algumas a mais de 500 quilômetros da sede do jornal, debilitou o jornalismo da Gazeta do Povo, ao afastar do trabalho por muitos dias três de seus sete repórteres políticos. “Isso ocorreu justamente em um momento de efervescência política no país, colocando em risco a sustentabilidade do jornal e revelando um grande potencial (de múltiplas ações judiciais) de causar danos irreversíveis, quando a imprensa escrita já enfrenta graves dificuldades econômicas”, destacou Mendes Junior.
“É interessante o conceito de ‘censura judicial’ mencionado pela nova presidente do STF, Carmen Lucia Rocha, para qualificar a sequência de ações que afastam da redação parte considerável de seus jornalistas”, acrescentou o diretor de redação. Cada viagem dos processados para comparecer às audiências por todo o Estado custou ao jornal R$ 25 mil, estimou Galindo, somando transporte, custo do advogado, hotéis e alimentação, sem contar as horas de trabalho perdidas.
Com a suspensão dos processos, os jornalistas esperam uma sentença definitiva do STF, que deve assumir o caso, conforme pediu a Gazeta do Povo, argumentando que os juízes do Paraná não podem julgar as queixas por que são todos partes interessadas. “Alguns juízes se reconheceram impedidos de atuar, mas a maioria não”, lamentou Mendes Junior.
Esse é um caso extremo, em que os operadores da justiça arbitram em seu próprio interesse, castigando seus supostos agressores com viagens e trâmites forçados que limitam liberdades. Mas o abuso do direito de recorrer à justiça contra jornalistas incômodos se tornou recorrente no Brasil.
A Iurd disseminou pelo país, em 2007 e 2008, um total de 107 ações judiciais por intermédio de seus fiéis para sufocar Elvira Lobato e o jornal Folha de S.Paulo, o jornal de maior circulação do Brasil. Pouco importava que a jornalista e o diário vencessem todos os processos, o castigo precede à sentença.
Lucio Flavio Pinto teve que estudar direito para se defender, sem contar o tempo da produção solitária de seu Jornal Pessoal. A venda deste quinzenário com tiragem de dois mil exemplares é uma grande fonte de renda, já que ele rejeita qualquer publicidade. Os processos contra ele duraram, em média, quatro a cinco anos. Continuam pendentes ainda outros quatro, que começaram há 11 anos. Condenado duas vezes, contou com a solidariedade de pessoas de todo o país para pagar as penas indenizatórias.
Em vários casos seus demandantes não pedem a execução das sentenças. “Preferem manter a espada pendente, prolongando os processos”, pontuou à IPS Lucio Flavio, cujas denúncias evitaram apropriações ilegais de extensas terras no Pará, embora em alguns casos também tenham lhe custado agressões físicas.“As ações judiciais recorrentes são o meio mais eficiente de censura”, afirmou o jornalista, reconhecido como “herói da liberdade de informação” pela organização Repórteres Sem Fronteiras, com sede em Paris.
Em seu caso não houve a solidariedade de organizações empresariais como a Associação Nacional de Jornais, que deram à Gazeta do Povo o prêmio Liberdade de Imprensa 2016, reforçando a reação generalizada do setor jornalístico ao assédio de juízes e promotores do Paraná.“Há outras tentativas de cercear a liberdade de imprensa”, uma vez que “ajudam a prevenir novos casos” com sua forte repercussão, ressaltou à IPS a especialista Ângela Pimenta, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, que mantém o portal Observatório da Imprensa. Envolverde/IPS