RIO DE JANEIRO – Um Brasil mais deformado do que o esperado emerge do censo nacional cujo trabalho de campo foi feito entre agosto e maio passados. A população é bem menor do que a projetada e o número de moradias desocupadas ultrapassa 18 milhões, o triplo do déficit habitacional.
“Há uma evidente falha de mercado” nessa realidade desequilibrada, se os dados estiverem corretos, disse José Eustáquio Alves, doutor em demografia e pesquisador aposentado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão estadual responsável pela censos.
A soma das casas vazias, 11.397.889, e de uso ocasional, 6.672.912, supera um total de 18 milhões, enquanto estima-se que seis milhões de unidades habitacionais estejam faltando para acomodar a população sem-teto ou vivendo em condições precárias.
O aumento em relação ao censo anterior, realizado em 2010, foi de 34,2% no total de domicílios existentes, que passou de 67,46 milhões para 90,69 milhões em 2022, e de 80% nos “desocupados”. difícil de justificar num país com elevados níveis de pobreza, potenciado por um período de estagnação económica.
Há dúvidas sobre a consistência dos resultados já divulgados pelo IBGE, cujos detalhes ainda não foram processados. Questiona-se principalmente o número de habitantes, que somava oficialmente 203.062.512 em 1º de agosto de 2022, quando foi iniciado o cadastramento.
Para essa data a projeção do mesmo instituto, com base em seus dados anteriores, o país teria 214 milhões de habitantes.
“Por falta de financiamento e políticas adequadas, as cidades se expandem para as periferias, muitas casas são construídas em áreas desocupadas, o que resulta em um duplo prejuízo: novas áreas pobres são construídas e a vitalidade da cidade consolidada é retirada”: Sergio Magalhães .
O crescimento natural da população desde o censo anterior foi de 18,3 milhões. Somados aos 190,8 milhões registrados em 2010, o total de habitantes do país chegaria a 209,1 milhões, disse Alves à IPS em entrevista no Rio de Janeiro.
A partir disso, devem ser descontados cerca de dois milhões do saldo migratório negativo, causado principalmente pela recessão econômica que o Brasil sofreu entre 2014 e 2016, com mais brasileiros migrando para o exterior do que estrangeiros acolhidos no país.
Isso significaria uma população de 207 milhões de habitantes, estimativa divulgada pelo próprio IBGE em dezembro, com base em dados parciais já levantados.
A redução de quatro milhões no resultado final pode ter uma explicação na avaliação do processo censitário que o IBGE prometeu divulgar em breve, algo que não fez em 2010, lembrou Alves.
Mas há outros dados “demograficamente inexplicáveis”, como a perda de população em algumas grandes cidades, sublinhou.
Um exemplo é Salvador, capital da Bahia, cujos 2,67 milhões de habitantes em 2010 caíram para 2,41 milhões em 2022. Uma queda de 9,6% sem causas aparentes.
Enquanto isso, outras capitais do mesmo Nordeste registraram crescimento, como João Pessoa (15,3%), Terezina (6,4%) e Maceió (2,7%).
Nas demais regiões brasileiras, Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, e Belém, capital do estado amazônico do Pará, também apresentaram perdas populacionais de 5,4% e 6,5%, respectivamente.
“São dados raros, aparentemente inconsistentes, que os demógrafos terão muito trabalho para explicar ou corrigir, sem negar o valor do censo, que é necessário”, disse Alves.
Mas em relação à habitação, os resultados são menos questionáveis. O IBGE utilizou novos recursos, como imagens de satélite, dados da rede de distribuição de energia elétrica e outros mecanismos que teoricamente melhoram a medição, reconheceu.
O déficit habitacional não possui critérios reconhecidos mundialmente, mas a Fundação João Pinheiro , centro de pesquisas do governo do estado de Minas Gerais, desenvolveu uma metodologia aceita nacionalmente, que agrega moradias de aluguel precárias, compartilhadas e inacessíveis nas cidades.
Em outras palavras, o déficit se estabelece de acordo com a dificuldade de acesso à moradia digna. A estimativa atual é de 6 milhões de unidades, que as construtoras tendem a aumentar no interesse de expandir seus negócios.
Mas com tantas casas ociosas, a política habitacional baseada na construção de novas unidades perdeu o sentido. “A falha do mercado é corrigida com a ação do poder público para redistribuí-los”, por exemplo com um imposto progressivo sobre prédios urbanos vazios ou aluguel subsidiado para os pobres, propõe Alves.
O censo reforça os argumentos dos “sem-teto”. Na zona sul de São Paulo, maior metrópole brasileira, com 11,45 milhões de habitantes, há mais de 588.978 domicílios desocupados, o dobro de 2010 e mais do que o déficit de quase 400 mil domicílios estimado pela prefeitura.
“A prefeitura precisa notificar os imóveis sem uso, para que sirvam de quartos” para os necessitados, disse Nilda Neves, coordenadora-geral do Movimento pelo Direito à Moradia e membro do Conselho Municipal de Política Urbana .
“No Brasil existem boas leis urbanísticas” e a Constituição estabelece que “a propriedade cumprirá a sua função social”, mas acontece que não é cumprida, lamentou à IPS por telefone de São Paulo a especialista e ativista formada em assistência social.
Existem dezenas de movimentos por moradia na metrópole paulistana, a maioria defendendo moradias para os pobres nas áreas centrais, não nas periferias sem infraestrutura onde os programas habitacionais tendem a asselhá-los.
Esses movimentos estimam há anos que o centro e os bairros vizinhos tenham cerca de 400 mil unidades habitacionais. A ocupação de prédios sem uso é uma ação frequente promovida por diferentes movimentos. Vários hotéis e prédios públicos vazios já foram convertidos em antigas residências para sem-teto.
Existem programas habitacionais do governo, mas lentos e insuficientes. A prefeitura de São Paulo prometeu moradia para 45 mil famílias até o final de 2024, mas há mais de 180 mil pessoas cadastradas esperando por uma casa na cidade.
Para o urbanista e professor de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro , Sergio Magalhães, os novos dados do censo do Brasil seguem uma tendência global de diminuição das famílias e aumento de domicílios, o que possivelmente é agravado localmente em alguns aspectos.
O que foi singular, disse à IPS, foi a velocidade do crescimento urbano brasileiro na segunda metade do século 20, quando a população nas cidades multiplicou por 11 entre 1940 e 2000, quando atingiu 138 milhões de pessoas.
Esta evolução exigiu uma construção acelerada de casas, das quais 80% foram feitas pelos próprios proprietários, em grande parte de forma irregular.
Os programas habitacionais e os financiamentos bancários representavam apenas um quinto dessas moradias, destacou Magalhães, que dirigiu secretarias e órgãos públicos de habitação e urbanismo no Rio de Janeiro nas décadas de 1990 e 2000.
Os problemas habitacionais e urbanos se acumulam no Brasil, mas a cidade continua ausente dos debates políticos e das eleições no país, lamentou à IPS.
O esvaziamento do centro e de bairros que antes tinham muita vida é observado em Copacabana, famoso bairro carioca, que chegou a 300 mil habitantes e hoje está reduzido à metade, deu como exemplo.
“Por falta de financiamento e de políticas adequadas, as cidades se expandem para as periferias, muitas casas são construídas em áreas desocupadas, o que resulta em um duplo prejuízo: novas áreas pobres são construídas e a vitalidade da cidade consolidada é retirada”, afirma Magalhães, concluiu.
(Envolverde)