Um “Fundo Fraterno” poderia funcionar como apoio aos estudantes com menos recursos
O novo reitor da Universidade de São Paulo – USP – teve a infame tarefa de expor a realidade deixada por seu antecessor: a situação orçamentária da USP é crítica. Crônica de um caos anunciado, parafraseando García Márquez. Já era conhecido que o professor Rodas tinha aumentado significativamente a folha de pagamento em detrimento dos investimentos. Em 16 de Janeiro de 2013, O Estado de S. Paulo noticiou que a folha de pagamento teve aumento de 36% em três anos sem que a universidade tivesse aumento semelhante em seu repasse, trazendo consequências negativas no investimento da instituição. Não estou afirmando que esteja errado aumentar os salários de docentes e funcionários, mas fica evidente que o plano de carreira instaurado em 2011 foi irresponsável. Eis uma lição para os que aceitaram o aumento no contracheque sem questionar de onde viria o dinheiro. Agora ficaram sabendo: de nenhuma parte. Secaram o poço. Mas ainda há quem queira usar o volume morto do orçamento, o Fundo de Reserva da universidade.
Frente à crise, diferentes segmentos dentro da universidade vão se posicionando. Docentes e funcionários anunciam greve porque o reitor não dará aumento nos seus salários. O Diretório Central de Estudantes (DCE), recentemente eleito por menos de 10% dos estudantes que podiam votar, está na torcida para que o conflito entre administração e funcionários piore. Assim os membros do DCE atendem os interesses dos partidos políticos aos quais estão ligados, e os 90% dos estudantes restantes continuaram indo às aulas indiferentes ao futuro da instituição até que a paralização aconteça.
Quero falar justamente sobre os estudantes da USP, quem somos e como podemos ser parte da crise ou da solução. Em termos econômicos, eu vejo as universidades públicas como programas de subsídio público com destinação específica, no caso a educação. Há outros programas semelhantes em andamento com universidades privadas, como o Prouni. Todos esses programas têm como finalidade última permitir o acesso da população à educação superior. Mas vou focar no caso da USP por sua importância para o País. A USP é financiada por cerca de 5% da arrecadação do ICMS do estado de São Paulo. Esse imposto responde por 18% do preço da maioria dos bens e serviços comercializados no estado. Em outras palavras, quando o cobrador de ônibus ou o governador do estado compram um produto de 100 reais em São Paulo, estão ajudando no orçamento da USP em 0,9%, o que equivale a 90 centavos.
Cada um dos estudantes da USP recebe um subsídio equivalente ao custo de nossos estudos. O custo de manter um estudante varia muito não só pelo número de alunos por sala, mas pela natureza das disciplinas cursadas. Cursos que requerem disciplinas com laboratórios mais sofisticados são mais caros que aquelas que podem ser ministradas só através de palestras e seminários em sala de aula. Isso sem falar dos salários de docentes e pessoal de apoio. Para ter um exemplo e usando como referência algumas universidades privadas, vou usar três salários mínimos, 2.172 reais no valor de hoje, como valor de referência de mensalidade. Para que o consumo da família de um estudante da USP seja equivalente ao custo de seus estudos, essa família deveria comprar produtos no estado de São Paulo por pouco mais de 33 salários mínimos por mês, ou ao redor 24 mil reais. Não vale incluir os produtos que a família comprou durante a viagem a Orlando porque esses não pagam ICMS. Se a família do estudante consumiu menos do que essa soma, recebeu subsídio para esse estudante por parte dos outros consumidores de São Paulo. Como referência, o Datafolha estimou em novembro de 2013 que 66% das famílias tinham renda de até três salários mínimos e 1% renda de mais de 20 salários mínimos. De outro lado, 16% das famílias dos ingressantes na USP em 2013 recebiam até 3 salários mínimos e 12% mais de 20 salários mínimos. Aí chegamos a um ponto crítico: quem está recebendo o subsídio público para estudar na USP?
Para poder estabelecer uma analogia com o Prouni, programa de subsídio para permitir o acesso à educação superior em universidades privadas, só estudantes com renda familiar inferior a um salário mínimo e meio por pessoa podem receber bolsa integral. Estudantes com renda familiar de até três salários mínimos por pessoa podem se candidatar para receber bolsa de 50%. Se um critério semelhante fosse usado na USP, cerca de metade dos alunos poderia receber bolsa integral e perto de um terço não poderia solicitar bolsa. Em cursos como medicina ou direito, menos de 15% dos estudantes poderiam pedir bolsa integral. Mas a USP concede “bolsa integral” a todos. E há entre eles quem se queixe do benefício pago pelo programa Bolsa Família.
Em um texto anterior expliquei como o processo de vestibular da USP está desenhado para favorecer quem sempre teve mais oportunidades. No presente texto quero chamar a atenção sobre como esse processo injusto se traduz em subsídio para famílias que não precisam desse benefício. Desde que reservadas as vagas para quem mais precisa por sistemas de cotas, sou totalmente a favor de que os filhos das famílias abastadas possam estudar na USP. A interação de pessoas de diferentes origens na mesma sala de aula enriquece a experiência educativa. Mas sou contra que estudantes que não precisam sejam receptores desse subsídio público. Se muitos estudantes só podem ter acesso à educação superior porque estudar na USP é gratuito e ainda precisam de apoio para poder se manter, há outros estudantes para os quais o dinheiro não é obstáculo para se ter acesso à educação superior.
Após o editorial de 1º de maio na Folha de S.Paulo que pedia ao novo reitor “pôr em debate a cobrança de mensalidades de quem pode pagar”, Helio Schwartsman detalha a proposta no mesmo jornal: “cobrar mensalidades de todos e criar programas de bolsas e empréstimos para os alunos que não tenham condições de pagar.” Discordo da ideia de cobrança indiscriminada de mensalidade do igual valor para todos para que a universidade deixe de ser mantida pelo estado de São Paulo. Quem precisa do subsidio público para estudar, o deve receber sem se endividar. Mas concordo com a Folha que devemos debater a mensalidade. Por isso quero compartilhar a experiência que tive quando cursei minha primeira graduação na Universidad Nacional de Colombia, maior universidade público desse país. Naquela época, entre os documentos que todos os estudantes devíamos apresentar para matrícula estavam a declaração de renda ou o equivalente de nossas famílias, recibo de pagamento de mensalidade do último ano de ensino médio para quem estudou no ensino privado e comprovante e endereço. A universidade fazia avaliação socioeconômica com esses documentos e determinava o valor a pagar por semestre. A menor semestralidade era o equivalente a uma passagem de ônibus na época, valor pago por estudantes de ensino médio público. Um amigo e eu sempre apostávamos cara e coroa para ver quem pagaria a semestralidade do outro. Nesse tempo, o valor de ambas as semestralidades era de só uma moeda. O maior valor, que era muito maior, ainda assim era baixo quando comparado com a mensalidade de muitos colégios e universidades privadas. De outro lado, os estudantes com condições socioeconômicas mais precárias recebiam da universidade um “empréstimo-bolsa”: o valor equivalente a um salário mínimo era entregue mensalmente ao estudante a título de empréstimo para sua manutenção com cinco anos de graça após a formatura para iniciar a pagar e juros muito baixos. Se o estudante terminava o curso no tempo ideal proposto, sem atrasar, tinha a metade do empréstimo abatida. E ainda se o estudante tiver no semestre uma média de notas entre o 10% melhores de sua turma, abatia todas as mensalidades recebidas nesse período.
Não vou negar os perigos de propor a cobrança de mensalidade. O maior deles é que o governo não cumpra com sua obrigação e queira que a universidade seja sustentada sem repasse público. Ainda, implementar essa medida sem estabelecer um sistema de cotas pode criar a tentação de aumentar o número de estudantes abastados para incrementar a renda da universidade. Mas eu seria o primeiro a pagar com agrado uma mensalidade que tivesse como destinação específica ajudar na criação de “empréstimos-bolsa”, melhorar condições de moradia, aumentar as bolsas de iniciação científica para estudantes com condições socioeconômicas desfavoráveis e incrementar iniciativas que melhorem as condições de estudantes de ensino médio público para seu ingresso à universidade. Os recursos da mensalidade não podem ser destinados à manutenção de atividades de rotina, mas ao apoio dos estudantes com menos recursos para ampliar o acesso ao ensino superior. Esses recursos constituiriam um mecanismo de solidariedade entre estudantes que eu gostaria de denominar como Fundo Fraterno, ao qual ex-alunos também poderiam contribuir. Ainda, do mesmo jeito que o “empréstimo-bolsa” estimularia a terminar no prazo para maximizar o uso de recursos, os estudantes que pagassem mensalidade poderiam receber desconto se cumprissem com toda a carga horária ideal para seu semestre. Isso desestimularia o trancamento de disciplinas que é quase norma em muitos cursos da USP e produz subutilização dos recursos da universidade. A otimização da infraestrutura disponível poderia permitir inclusive em pensar na abertura de vestibular de inverno, o que incrementaria o número de estudantes e diminuiria o atraso daqueles que reprovam disciplinas.
Estou ciente que esses tipos de proposta são polêmicos porque o paradigma de que tudo que é público deve ser gratuito é ainda muito forte para a maior parte da população. Mas o tema de mensalidade não deve ser tabu na USP. Prefiro que não sejam os promotores da “privatização” da universidade pública os que liderem a discussão sobre o orçamento e o futuro da USP. Discordo de qualquer iniciativa que queira solucionar a crise orçamentária da folha de pagamento da universidade através da cobrança de mensalidade, mas reconheço que a mensalidade poderia ampliar os horizontes atuais de uma instituição acorrentada pelas decisões equivocadas da gestão anterior. Sei que a criação do Fundo Fraterno não é a solução ao problema de orçamento atual da USP, mas oferece novas opções para cumprir com a função social da universidade sem comprometer ainda mais o orçamento. Aos que vão criticar essa proposta, peço que não se limitem aos insultos, mas me demonstrem que há melhores alternativas viáveis a curto e médio prazo. Quero ainda convidar a uma aproximação entre a USP e seus ex-alunos. Tenho certeza que novas ideias podem surgir daqueles que receberam sua formação na universidade. Para superar essa crise, espero que estudantes, funcionários, docentes, ex-alunos, administração e comunidade se juntem para construir um novo sistema de governança na universidade que impeça a ação de gestões temerárias e colaborem na construção de uma universidade acessível de categoria mundial.
* Ricardo Palacios é médico, formado no exterior com o diploma devidamente revalidado no Brasil, brasileiro naturalizado. Foi consultor temporário para projetos de pesquisa da Organização Mundial da Saúde e agora estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. As opiniões expressadas neste artigo não representam a posição de instituição alguma.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.