Projeto Envolverde História – por Dal Marcondes, especial para o Projeto Carta Verde, parceria entre a Envolverde e a revista Carta Capital. Publicado originalmente em julho de 2011.
O investimento de empresas e ONGs em políticas públicas não busca substituir o Estado, mas sim demonstrar que dá para resolver dilemas históricos do subdesenvolvimento.
Uma das frases de efeito mais famosas do cenário da responsabilidade social empresarial é: “não pode existir empresas de sucesso inseridas em uma sociedade fracassada”. Hoje o que se discute é como as empresas podem apoiar programas de desenvolvimento social e ambiental, e até onde vai seu papel. Há no país centenas de institutos e fundações empresariais muito ativos nessas áreas, financiando projetos em campos como educação, preservação ambiental, saúde materna, direitos da infância e mais uma infinidade de causas. Muita gente diz que são paliativos para a ausência do Estado. Outros afirmam que é parte de uma nova forma de cidadania. O fato é que existe uma presença cada vez mais forte de organizações do terceiro setor empresarial atuando em áreas consideradas de “políticas públicas”, com investimentos próximos aos R$ 10 bilhões ao ano.
Outro jargão das empresas é que não se deve investir apenas para “dar o peixe a quem tem fome”, é preciso, repetem, “ensinar a pescar”. Este, porém, também está ultrapassado, não bastando mais apenas ensinar a obter o alimento ou o conhecimento do dia a dia. É preciso ir adiante e garantir que haverá recursos para sempre, em um processo mais elaborado de construção da sustentabilidade, ou como preconiza o economista e ganhador do Prêmio Nobel, Amartya Sen, procurando e resolvendo os gargalos da insustentabilidade. As empresas, que até os anos 80 do século passado consideravam que sua responsabilidade social restringia-se a gerar empregos e pagar impostos, chegaram ao novo milênio cobradas sobre temas antes absolutamente tabus, como por exemplo, o que fazem com seus lucros. “Existe uma expectativa de que as empresas contribuam para o desenvolvimento das sociedades onde estão inseridas”, explica André Degenszajn, diretor do Gife (Grupo de Institutos e Fundações Empresariais), uma entidade que reúne organizações do terceiro setor mantidas por empresas que, em sua maioria, carregam a marca da organização mãe.
No entanto, a maior parte dos investimentos realizados pelo “terceiro setor empresarial” mantém o foco em projetos que são realizados internamente, com pouca abertura para demandas vindas da sociedade ou de organizações desvinculadas da atividade corporativa. Uma pesquisa realizada pelo Gife em 2009/2010 mostra que 59% de seus 130 associados preferem atuar com projetos e equipes próprias, enquanto apenas 19% apoiam projetos de outras organizações. Entre as honrosas exceções está a Petrobras, maior financiadora empresarial de projetos ambientais, sociais e culturais do Brasil, que entre 2003 e 2010 aportou R$ 3,9 bilhões em cerca de 13 mil projetos. Outra que prefere fortalecer iniciativas locais é o Fundo Vale, que carrega a marca da maior empresa privada do país. Para Mirela Sandrini, gestora do Fundo, o investimento em desenvolvimento local é transformador. “Financiamos organizações locais e construímos parcerias com o poder público”, explica. Seu trunfo atual são projetos desenvolvidos em Paragominas, no Pará, que ajudaram a cidade a deixar a lista negra dos Municípios que mais desmatam no Brasil.
Existe uma estimativa, realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de que o investimento socioambiental realizado por empresas e organizações privadas tenha chegado próximo a R$ 10 bilhões em 2010, sendo que uma parte expressiva desse valor é aplicado preferencialmente em projetos com foco em educação. Isto se explica basicamente pelo número de analfabetos no país. Segundo Mozart Neves Ramos, que foi secretário de Educação de Pernambuco e reitor da Universidade Federal do Estado, e atua no movimento Todos pela Educação, existem quase 60 milhões de brasileiros incapazes de escrever ou entender um texto escrito. “São pessoas que nunca frequentaram escolas, ou que saíram delas analfabetos funcionais”, explica. Os projetos em educação também recebem a preferência porque o analfabetismo tem um peso de 50% na desigualdade social do país, e também porque cada ano na escola pode representar um acréscimo médio de 15% na renda das pessoas. Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que os países com maior crescimento econômico e PIB estão, também, entre aqueles onde a população tem mais anos de escolaridade.
Um dos fatores que fortaleceu a participação das empresas no investimento social foi a ênfase dada pela Constituição de 1988 à importância dos movimentos que apoiam a cidadania. Isso abriu caminho para a criação e consolidação das quase meio milhão de organizações não governamentais (ONGs) registradas no Brasil. Este número inclui os institutos e fundações empresariais. Destas, segundo uma pesquisa realizada pela Abong (Associação Nacional das ONGs), cerca de 60% atuam com orçamento inferior a R$ 1 milhão por ano, 30% com 1 a 3 milhões, 8,4% com verbas de 3 a 6 milhões e cerca de 6% têm mais dinheiro do que isso para o financiamento de projetos. Os recursos vêm, em sua maioria, de programas de cooperação internacional, parcerias com governos e financiamento e doações de empresas.
“Atualmente é difícil uma empresa de grande porte não realizar investimentos sociais”, comenta Degenszajn, diretor do Gife. Na maior parte das grandes empresas que atuam no Brasil, a destinação de recursos para o financiamento de projetos sociais e ambientais já é prevista ano a ano nos orçamentos, declarados em relatórios de sustentabilidade e com suas normas e formulários para solicitação presentes nos sites corporativos. A participação de empresas de todos os setores doando parte de seus lucros para melhorar o perfil socioambiental não é nova no mundo. Os movimentos de filantropia existem no capitalismo desde sua origem. A novidade é o aporte de instrumentos de gestão, a participação das empresas na busca de resultados sociais e a aferição dos objetivos alcançados. “A atuação está mais profissional, e as empresas querem saber como estão sendo aplicados os recursos”, explica Sônia Favaretto, superintendente do Instituto BM&FBovespa e responsável por instrumentos inovadores da busca das empresas por indicadores de desempenho em sustentabilidade, como o ISE (Índice de Sustentabilidade Empresarial), que todos os anos promove uma verdadeira maratona entre empresas que querem figurar em sua carteira, ou a Bolsa de Valores Sustentáveis, que procura mostrar para as empresas iniciativas de organizações da sociedade civil que oferecem projetos relevantes para o desenvolvimento socioambiental.
Casamento de agendas
Grandes causas também estão ligadas ao apoio de organizações do terceiro setor empresarial, como o Movimento Nossa São Paulo, que busca a construção de uma cidadania mais sofisticada na metrópole, e que é mantido basicamente por contribuições corporativas. “Já conseguimos avanços em transparência na governança da cidade e parcerias que estão apoiando a preservação de recursos da Amazônia ao impedir a comercialização de madeira ilegal em São Paulo”, explica Oded Grajew, gestor da iniciativa, e que tem uma longa história em organizar movimentos sociais com forte apoio empresarial, como a Fundação Abrinq e o Instituto Ethos. Esse casamento de demandas da sociedade e a vontade de colaborar com causas relevantes tem contribuído para a construção de uma moderna cidadania corporativa. João Meirelles Filho, diretor do Instituto Peabiru, organização com sede em Belém, Estado do Pará, e que desenvolve projetos de conservação ambiental e desenvolvimento social vê no financiamento das empresas uma importante fonte de recursos para quem quer trabalhar com causas de relevância para a sociedade. “Em dez anos obtivemos apoio de organizações que nos permitiram desenvolver mais de cem projetos em dezenas de cidades da Amazônia, com foco principal em desenvolvimento local”, explica. Um dos projetos de maior alcance do Peabiru é para obter o reconhecimento da “Reserva da Biosfera do Arquipélago de Marajó”, que mesmo sendo um bioma de especial importância, por ser o maior arquipélago marítimo-fluvial do planeta, vive com indicadores socioambientais muito abaixo da média brasileira e da Amazônia. “Nosso trabalho é financiado por empresas e organizações empresariais, sem isso não seria possível atingir os 12 Municípios espalhados pelo arquipélago e realizar todas as ações necessária para que a Unesco venha a reconhecer a região como Reserva Mundial da Biosfera”, argumenta.
O principal motivo de conflito entre financiadores e organizações que tocam os projetos não vem de nenhum tipo de descalabro com o uso de verbas, como acontece muito em relação ao uso de recursos públicos, mas sim da falta de uma contabilidade competente, onde os registros sejam capazes de demonstrar o destino efetivo de cada real aplicado. “As ONGs são em grande parte movidas por ‘amor à causa’”, explica Mirela Sandrini, ressaltando que este é um fator fundamental para que os projetos ganhem vida, mas que também é preciso estabelecer metodologias profissionais de governança e controle das despesas. Outro fator de tensão entre as organizações é a disputa que existe entre as causas. As empresas têm preferências entre objetivos sociais ou ambientais dos projetos que financiam e há uma constante disputa entre essas causas. Educação ocupa o primeiro lugar na pirâmide do interesse corporativo, seguido de projetos para populações desfavorecidas, em terceiro lugar questões de gênero e, em quarto, meio ambiente. Outros temas tidos como importantes, como esporte, racismo e relações de consumo giram em torno da 20ª posição, conforme documento divulgado pela Abong. “É comum ouvirmos que o setor ambiental ‘roubou’ recursos do social, por exemplo”, observa Sônia Favaretto, que também é diretora de Sustentabilidade da BM&FBovespa. “Precisamos superar este olhar de divisão e realizar o casamento das agendas de forma construtiva”, explica.
O Investimento Social Privado, como também é conhecido o recurso empresarial aplicado em causas sociais ou ambientais, pela lógica da economia tradicional, é uma espécie de “indulgência” das empresas, uma vez que desde sua origem o capitalismo se baseia em um dos poucos recursos inesgotáveis do planeta, o egoísmo humano. Um dos principais pensadores do capitalismo, Adam Smith, pontifica que, “ao buscar seu próprio interesse, o indivíduo frequentemente promove o interesse da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo”. Neste trecho de seu livro A Riqueza das Nações, Smith criou o conceito de “mão invisível do mercado”, que fundamenta a doutrina do liberalismo.
Contrariando a lógica pura do mercado, empresas e organizações da sociedade civil, que atuam na Amazônia ou acreditam na necessidade de políticas públicas e de desenvolvimento mais adequadas para a região, se uniram para criar o Fórum Amazônia Sustentável, que tem entre seus associados algumas das maiores empresas do país, como Alcoa, Vale e Petrobras, entre outras, e muitas das mais ativas ONGs com causas na região, como o Instituto Socioambiental (ISA), Imazon, Instituto Ethos, Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e outros. Desde sua fundação, em 2008, já reuniu 241 signatários e esse número não para de crescer. “É um espaço privilegiado de diálogo, onde os interesses de cada parte são colocados sobre a mesa e os debates são abertos”, explica Adriana Ramos, representante do ISA, organização que ocupa este ano a Secretaria Executiva do Fórum. Um dos associados é o Instituto Walmart, que mesmo não tendo nenhuma de suas lojas na região, financia projetos na área, como na Floresta Nacional do Amapá, onde financia o processo de criação e consolidação da área protegida. “A evolução e a profissionalização do investimento social impactam na gestão e no alinhamento com as estratégias de sustentabilidade da empresa”, explica Paulo Mindlin, diretor do Instituto Walmart. Seu trabalho está estruturado em três eixos: Desenvolvimento Local, Economia Inclusiva e Formação Profissional para o Varejo, com uma média de investimento anual de R$ 7 milhões, que já beneficiaram 56 projetos.
“Temos grande expectativa de que haja cada vez mais recursos para a área de meio ambiente, porque ainda está muito abaixo do necessário, já que não há política de incentivo fiscal nessa área. Conseguir dinheiro ainda depende muito da capacidade de relacionamento das ONGs”, avalia Adriana Ramos, do ISA, que tem foco principal nas questões dos direitos indígenas no Brasil. Adriana explica que a maior parte dos recursos da ONG vinha de convênios com organizações do exterior, mas que isto está mudando porque o Brasil não é mais visto como um país pobre. “Agora precisamos ainda mais das empresas para financiar nossos projetos”, explica a ativista.
“A maior parte das empresas investe em projetos e organizações próprias. Mas esses papéis são diferentes e precisamos ter mais do que institutos mantido por empresas. Também precisamos de organizações da sociedade civil independentes. Um investimento não substitui o outro”, explica Beto Veríssimo, do Imazon, um instituto de pesquisa voltado para o desenvolvimento sustentável da Amazônia desde 1990. Veríssimo chama a atenção para o fato de que há sempre uma crítica sobre os recursos que venham de fora. “Seria especialmente importante o apoio às nossas pesquisas vindo de empresas estabelecidas na Amazônia, mas isso ainda não acontece no volume necessário”, diz o pesquisador, observando que o Brasil tem “economia pujante, com grandes empresas globais, entre bancos, construtoras e mineradoras, naquela região”.
Dentro e fora
A entrada de verbas estrangeiras toca na questão delicada da soberania nacional, um tema tensionado mais por preconceitos, do que por fatos comprovados. Um estudo do Grupo +Unidos, que agrega empresas dos Estados Unidos instaladas no Brasil e com investimentos sociais locais, mostrou que, em 2006, 65% delas tinham recebido dinheiro da matriz norte-americana para projetos sociais. Contudo, as filiais tinham autonomia para usá-lo conforme as realidades e necessidades daqui. Naquele ano, as 46 integrantes do +Unidos aplicaram R$ 258 milhões em investimento social no Brasil, além de doações de mercadorias e serviços, incluindo toneladas de alimentos, agasalhos, remédios, computadores, materiais escolares, etc. Ao contrário das empresas nacionais, a maioria, 63%, optou por financiar projetos de terceiros, concomitantes à operação de projetos próprios e outros 20%, exclusivamente, por projetos de terceiros. Outra pesquisa, da Wings (Worldwide Initiatives for Grantmaker Support), uma rede que reúne associações sem fins lucrativos de 54 países, mostrou um quadro similar: as empresas buscam tecnologias sociais com potencial de promoção de justiça e equidade e que possam ser replicadas ao redor do mundo.
Raízes profundas
Os esforços empreendidos por governos, ONGs e empresas ao longo das últimas décadas no Brasil são muitos e mostram que não é fácil alcançar os ideais promulgados em 1988. As causas de nossas mazelas sociais estão arraigadas em questões difíceis de se transformar, como a falta de autovalorização e empoderamento das populações mais carentes em relação ao seu destino. A acomodação, conformismo e a aceitação da exploração de muitos por poucos, seja por razões de tradição, de religião ou pela crença de que os mais fortes ou mais espertos podiam e, até deviam, tirar proveito dos outros, sob pena de passarem por tolos se não o fizessem.
Um caso exemplar de investimento social é o Instituto Embraer, cujo principal projeto é uma escola de ensino médio gratuita em São José dos Campos, Estado de São Paulo, para estudantes egressos do sistema público e que já formou 1.406 alunos desde 2002. Ali, cada aluno tem dez horas de aula por dia, com uma estrutura de ponta e um sistema de ensino que está obtendo 100% de formandos aprovados nos vestibulares das melhores faculdades, há três anos. O ingresso no colégio atrai quatro mil candidatos que passam por um rigoroso processo seletivo, no qual apenas 200 estudantes são aprovados. No entanto, não pretendem ampliar esta atuação. “Não queremos substituir o Estado. Mostramos que é possível e queremos ver este colégio replicado. Estamos abertos para repassar o modelo a quem interessar, empresas, Municípios, outras instituições”, esclarece Pedro Ferraz, diretor do Instituto Embraer, mantido exclusivamente com verbas da empresa de aviação. A organização também decidiu aplicar R$ 1,5 milhão na implantação de um moderno centro de educação ambiental, de acesso livre para alunos de outras escolas, mantém cursos de empreendedorismo para jovens da comunidade, em conjunto com a Junior Achievment e avalia e financia projetos independentes, indicados por funcionários da Embraer. O orçamento do Instituto passou de R$ 2,2 milhões, em 2002, para R$ 10 milhões, em 2010.
Apesar de todo este empenho, é difícil escapar do efeito de formar “ilhas de excelência”, onde tantos ficam de fora, ou então cair no desafio de “enxugar gelo”, que acomete tantos projetos bem-sucedidos, que atraem mais e mais carentes, em uma progressão impossível de dar conta. Diante deste cenário, a principal meta dos associados do Gife agora é a articulação com as políticas públicas, para ganho de escala. “As questões sociais não serão resolvidas por um único ator”, esclarece André Degenszjan. Ao decidir realizar investimento social, o Fundo Vale escolheu fortalecer a sociedade civil, em vez de aventurar-se em um campo em que nunca atuou. Assim, estabeleceu um fundo privado, de início de R$ 51 milhões, para ficar à disposição de organizações com comprovada experiência em campo para que busquem respostas eficazes para as questões centrais da macrossustentabilidade. Como prioridade, elegeu ações conjugadas para estancar o desmatamento na Amazônia, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento local. “Avaliamos e apoiamos propostas sob o ponto de vista de gestão integrada de território”, explica Mirela Sandrini, gerente do Fundo. Hoje, o Fundo tem R$ 79 milhões e gerencia uma carteira de 19 projetos, entre eles, o de Municípios Verdes, que expande este modelo de gestão para pontos críticos do território brasileiro.
Um ponto importante para a definição dos campos de atuação de cada empresa, instituto ou fundação que carregam uma marca, é não esquecer que sua ação não deve se desvincular dos objetivos dos negócios da empresa mãe. O recado vem do economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e um dos articuladores do Núcleo de Estudos do Futuro. “Bancos devem sempre se lembrar que seu papel é financiar a sociedade e buscar fazer isto em parâmetros justos, e empresas precisam ser eficientes e agir de forma a otimizar seus benefícios sociais e minimizar seus impactos ambientais”, explica. Para ele, só de um casamento de intenções e ações entre as empresas e suas ações socioambientais se estará realmente operando transformações na economia e na sociedade. (Envolverde)