por Marcelo Knobel e José Alves de Freitas Neto*, Unicamp –
A disputa para ingressar nas melhores universidades públicas do País é feroz. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, recebeu 83.697 inscrições para as 3.396 vagas em disputa nos diversos processos seletivos de 2019. No vestibular, o principal sistema de ingresso, a concorrência geral foi de 29,5 candidatos por vaga. No curso de medicina, a concorrência chegou a 330 candidatos por vaga.
Tamanha competição faz que os processos de seleção das universidades públicas sejam altamente excludentes. Como se sabe, a maioria dos alunos que conseguem entrar nessas instituições estudou em escolas particulares e vem de famílias com boas condições socioeconômicas.
Embora tenham surgido vários programas de inclusão social e ação afirmativa nos últimos anos, a elite econômica continua a levar vantagem nos processos de seleção para cursos de alta demanda. Isso porque o número de vagas no ensino superior público brasileiro ainda é muito limitado.
A Unicamp demorou a adotar uma política de cotas – aplicada pela primeira vez em 2019 –, mas não ignorou a necessidade de aumentar a inclusão em seus cursos de graduação. Para isso a universidade criou em 2004 o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (Paais), uma iniciativa pioneira baseada na concessão de pontos extras no vestibular aos candidatos provenientes da rede pública de ensino e aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
Os efeitos do Paais foram imediatos: graças ao programa, a proporção de alunos de escolas públicas entre os aprovados no vestibular subiu para cerca de 30% e a de pretos, pardos e indígenas, para quase 20%. Com o passar dos anos, porém, chegou-se a um ponto de estagnação no crescimento desses grupos.
Na tentativa de resolver o problema, a Unicamp triplicou em 2016 a bonificação concedida pelo Paais. Verificou-se que a nova pontuação não resultou no aumento esperado do número de negros entre os inscritos, além de causar algumas distorções em alguns cursos no que se refere à admissão de estudantes da rede pública. Posteriormente o programa passou a contemplar também estudantes que cursaram o ensino fundamental em escola pública, elevando a média a cerca de 50% dos matriculados.
A recente adesão às cotas étnico-raciais, em 2019, veio acompanhada de mudanças arrojadas na forma como a Unicamp seleciona seus alunos de graduação. Os estudantes que ingressaram este ano na universidade puderam participar de até quatro processos seletivos diferentes: o vestibular tradicional, um edital centrado no desempenho dos candidatos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), outro edital direcionado a medalhistas em olimpíadas científicas e de conhecimento e um vestibular específico para indígenas. Em 2019, 2% dos ingressantes são indígenas de 23 etnias diferentes e a maioria dos estudantes veio do Amazonas.
A Unicamp enxergou na combinação entre cotas e vias diversificadas de acesso à graduação um meio de promover a inclusão sem comprometer a reconhecida qualidade do seu corpo discente. A meta é ter entre os alunos a mesma proporção de pretos e pardos (37,2%) que se vê na população do Estado de São Paulo.
O sistema de cotas da universidade prevê que 25% das vagas existentes em cada curso de graduação sejam reservadas a candidatos autodeclarados pretos e pardos. Destas, parte deve destinar-se a cotistas inscritos no vestibular tradicional e parte aos que concorrem com base na nota no Enem. Outra particularidade do sistema é o fato de permitir que os optantes pelas cotas passem para a ampla concorrência depois que as vagas reservadas forem todas preenchidas. Basta para isso que eles superem a nota mínima exigida pelo curso em que desejam entrar.
As mudanças no acesso à graduação da Unicamp não interferiram no Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS), lançado em 2011. Inovador, o ProFIS garante vaga num curso abrangente de nível superior a pelo menos um e no máximo dois dos melhores alunos do último ano de cada umas das 95 escolas públicas de ensino médio de Campinas. O critério de seleção para o preenchimento das vagas – são 120 no total – é a nota no Enem. Os egressos do ProFIS têm vaga garantida na Unicamp sem a necessidade de prestar vestibular.
Finalmente, vale destacar o estabelecimento na Unicamp da Cátedra Sérgio Vieira de Melo para Refugiados. A universidade abriga hoje 15 estudantes em condição de refúgio, que se somam às centenas de alunos estrangeiros participantes de programas de intercâmbio internacional. Tidas como um espaço único para a troca de ideias, o contato com múltiplos saberes e a defesa dos referenciais democráticos e republicanos, as universidades brasileiras – sobretudo as públicas – não podem ficar indiferentes aos grandes problemas que afligem o País. Ao criar mecanismos para ampliar a presença de negros, indígenas, estudantes oriundos de escolas públicas e estrangeiros em seus campus, as universidades não só tornam o ambiente universitário mais rico e propício a uma boa formação acadêmica, como também contribuem para a redução das desigualdades sociais determinadas pela origem socioeconômica e étnico-racial dos indivíduos.
Os resultados obtidos pela Unicamp são extremamente promissores, mostrando que é possível responder aos anseios por uma sociedade mais justa e menos desigual por meio de iniciativas focadas no mérito, na inclusão e no aumento da diversidade entre os alunos. A democratização do acesso, entretanto, deve ter continuidade com políticas sólidas de permanência e de apoio para o desenvolvimento acadêmico dos estudantes. É esse o bom desafio que temos pela frente.
*Respectivamente, reitor da Unicamp e coordenador executivo do vestibular da mesma universidade
(#Envolverde)