por Samyra Crespo, especial para Agência Envolverde –
Só eu sei como eu sou. Os outros me imaginam. Essa frase nos remete à inexorável subjetividade a que estamos condenados quando olhamos o outro (um ser semelhante a mim mesmo).
Com os animais o abismo aumenta, pois embora sejam seres vivos, sabemos que os comandam uma programação biológica que “decide” por cada indivíduo visando à sobrevivência e à perpetuação da espécie. Ele não faz escolhas. Obedece a instintos bem definidos.
Sem entrar no cipoal das teorias que tentam “humanizar” os animais ou “animalizar” o ser humano – que extrapolam em muito minha intenção aqui, me parece que o REI LEÃO, remake do desenho famoso (visto por milhões) perde uma boa oportunidade de reforçar o discurso que faz sobre a natureza e suas virtudes/ou características.
Como no desenho (animação anterior) a história é linear e arquetípica: há um leão líder, bom e justo que é traído por um irmão invejoso que o mata covardemente. Usurpa o trono de Rei e pensa que matou o filhote herdeiro. Até aí repete a estrutura da Branca de Neve e sua madrasta cruel e não aponta novidade nenhuma nas histórias infantis de faz-de-conta. A maioria segue a mesma trilha.
Mas entre o desenho e o filme atual se passaram mais de 20 anos.
Estamos na maior crise ecológica do Planeta.
A computação gráfica recria leões que se parecem com os de verdade e quase, eu disse quase se comportam como leões de verdade.
Um leve verniz ecológico pincela cenas e situações: a caça excessiva devastando os rebanhos e a vida selvagem. Há tentativa, frustrada, de mostrar que tudo está ligado numa imensa teia da vida. É um pouco ridícula a tentativa de fazer um leão – em crescimento – virar quase vegetariano. Ele come proteína animal de insetos etc. – e a mensagem que se passa é que os pequenos animais podem ser devorados. Sem culpa.
A ecologia dos leões é bem conhecida e sua liderança está ligada ao destemor e ao fato de ser o mais forte do grupo, com gene dominante. Não há justiça nem bondade na seleção natural do líder. A ciência já desvendou todos os mistérios deste felino belo e majestoso. Depois de acasalar pouco liga para a fêmea ou para os filhotes. Cabe à Leoa caçar e proteger a cria.
Claro, na história destinada ao público infantil o maniqueísmo funciona, a antropomorfização idem.
Mas é essa a noção de natureza que desejamos passar às nossas crianças?
A desinformação sobre como funciona a cadeia alimentar (explicitada erroneamente com as hienas identificadas com o mal e a vilania), e a invenção de que o Leão herói – Simba – pode mudar sua própria natureza para comer cupim é uma bobagem que não considero inocente.
Em outras palavras, fala-se de bichos, apenas para falar de nós – humanos. De nossas qualidades e vilezas. Egoico.
Oportunidade perdida para se conhecer os leões, seu modo de vida e a ameaça real que recai sobre eles. No caso, na realidade para valer, nós seremos as hienas?
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”.
(#Envolverde)
Este texto faz parte da série que publico semanalmente para o site ENVOLVERDE/CARTA CAPITAL sobre o ambientalismo brasileiro.