Por Sônia Araripe, Editora de Plurale –
Quando começamos a desenhar esta edição, o coronavírus estava ainda começando a desembarcar no Brasil, sem o impacto de pandemia que acabou se espalhando rapidamente de Norte a Sul, Leste a Oeste do país. Foi quando nos chegou a notícia tão triste da passagem do Seu João da Silva, mais conhecido como o Seu João do Borboletário do Hotel Sesc Porto Cercado, em Poconé, Mato Grosso. Faleceu de câncer, aos 59 anos, depois de lutar valentemente. Ao longo dos 12 anos de história de nossa Plurale em revista, poucos personagens – que é como nós, jornalistas, chamamos os entrevistados mais marcantes – deixaram uma marca tão profunda quanto Seu João. Com o seu chapéu de abas largas, marca dos tempos de boiadeiro e o sorriso largo, ele nos apresentou, sempre com muito orgulho, a sua razão de viver tão conectado com a natureza: as borboletas.
Ao longo dos 12 anos de história de nossa Plurale em revista, poucos personagens – que é como nós, jornalistas, chamamos os entrevistados mais marcantes – deixaram uma marca tão profunda quanto Seu João. Com o seu chapéu de abas largas, marca dos tempos de boiadeiro e o sorriso largo, ele nos apresentou, sempre com muito orgulho, a sua razão de viver tão conectado com a natureza: as borboletas.
Percebemos que havia ali uma conexão muito forte entre o momento que vivenciamos – de mutação, do fortalecimento de valores e de propósito, de reconexão com a natureza – e o Seu João. Era uma metáfora, quase uma poesia. Para a borboleta surgir, a lagarta precisa morrer. O ciclo de vida é curto, mas também intenso e colorido. O Pantanal e sua gente – Nos conhecemos em 2019, quando estive no Pantanal para contar a história dos 20 anos de ação do Sesc na região e, principalmente, ouvir essa história contada pelos pantaneiros. Porque se é uma história de transformação, são pessoas que podem relatar esse causo: a exuberante conservação da natureza, tão próxima do avanço da agropecuária e das cidades vizinhas, se apresenta como cenário. Conhecemos a RPPN Sesc Pantanal, a maior do país, com 108 mil hectares, localizada no município de Barão de Melgaço (MT) e também o Hotel Sesc Porto Cercado, além de outras ações do Sesc Pantanal (leia matéria a seguir).
Seu João da Silva cuidava do Borboletário do Hotel Sesc Porto Cercado – estrutura imensa que abriga aproximadamente 3 mil borboletas de 20 a 30 espécies diferentes – quase como se fosse o “pai” ou o amigo dos animais. Tinha uma conexão incrível, como vi com poucos: era levantar a mão e as borboletas chegavam perto dele, quase como se pudessem saber que estava ali o seu protetor. “São minhas crias”, brincou Seu João. E logo completou neste encontro: “Quer que eu mostre as que eu mais gosto?”. E veio com um prato grande, cheio de uma espécie linda, com as asas que parecem camufladas. Um detalhe nos chamou a atenção: a camisa que ele usava naquele dia tinha a imagem aérea da Reserva. Essa é uma foto que também marca a história de Plurale: foi clicada por Luciana Tancredo, nossa Editora de Fotografia, quando esteve em nossa primeira visita à região, há nove anos.
Seu João era filho de um índio guató, Júlio, e da pantaneira Iva, da região de Mimoso. Os pais tiveram ao todo 16 filhos, em uma vida difícil e nômade, plantando o que a terra permitia, como mandioca e milho, e pescando para garantir o sustento da grande família. Quando a colheita já não bastava para alimentar todo mundo, era hora de partir em busca de novos destinos, entre o Rio Cuiabá e o Rio Piquiri. O relato da vida pantaneira vem detalhado no livro “No pulso das águas”, escrito por Carla Águas. A organização e o design são assinados por Maria Teresa Carrión Carracedo, também editora da obra. O livro rendeu fama para o Seu João: esteve em evento paralelo da famosa Festa Literária Internacional de Paraty, em julho de 2019.
Contou sua história de amor com as borboletas e a natureza, emocionando o público. Conhecimento dos antepassados – Da avó índia, Dona Maria, Seu João herdou o conhecimento das ervas e dos segredos da mata alagada. Da mãe, Dona Iva, a religiosidade e o gosto pelas festas religiosas. Do pai, Seu Júlio, a força e a conexão com a lida pantaneira e a disposição para acordar cedo e trabalhar com vontade. No livro, Seu João conta que, ainda rapaz, com 18 anos, viu sua chance de conhecer a cidade grande quando um peão boiadeiro da tropa ficou adoentado e ele pediu ao pai para substitui-lo. A mãe não queria deixá-lo partir, mas depois de uma boa dose de negociação, acabou cedendo, diante da promessa do chefe da comitiva – Seu Florêncio – de fazer os documentos do rapaz. Lá se foi o jovem João conhecer Aquidauana, viagem de setenta dias, conduzindo umas mil cabeças de gado. Após muita chuva e perrengues, chegaram em 48 dias, prazo bem inferior ao previsto. “Até hoje eu não me esqueço, Eu fiquei desorientado, abismado de estar lá dentro da cidade.” Tudo era novidade para o jovem, como cerveja, os avanços do progresso e a pressa da cidade. Dos tempos de peão, que sabia amansar cavalo e conduzir o gado mais bravio, ficou conhecido como João Ribeirinho.
Chegou a passar 15 anos longe de casa. O relato do seu reencontro com a mãe, D. Iva, às margens do Rio Paraguai, é de deixar mesmo o mais firme embargado. Muitos anos se passaram. Depois de trabalhar como boiadeiro e caminhoneiro, Seu João da Silva soube que tinha vaga para trabalhar em Poconé, no hotel que viria a ser o Hotel Sesc Porto Cerrado; desde então, sua história se mistura com a própria história dos mais de 20 anos de atuação do Sesc no Pantanal. “Tinha um porém”, me confidenciou quando estivemos proseando. Seu João, mesmo com toda essa experiência, ainda não sabia ler e escrever fluentemente. Era um analfabeto funcional, como milhões de brasileiros. O Sesc escalou uma professora especialmente para resolver esta lacuna no conhecimento do pantaneiro e, em pouco tempo, rápido e dedicado, ele já estava dando conta não só de assinar orgulhoso o seu nome, mas também de ler jornal e revista. “Gosto de aprender e saber do que está acontecendo”, disse.
No Sesc Pantanal, Seu João começou trabalhando como uma espécie de faz-tudo e acabou tornando-se quase um embaixador do elo mágico deste projeto que envolve ecoturismo e proteção à natureza. Na cidade de Poconé foi criada a Associação de Criadores de Borboletas, com 25 famílias que recebem, em média, um salário mínimo do Sesc Pantanal para cuidar das crisálidas nos seus quintais, plantando pés de maracujá, jaborandi e bananeiras para alimentar os animais. A família de Seu João, a princípio, estranhou o ofício, mas o próprio Seu João nos contou que as borboletas o ensinaram a ser “um homem menos duro” com a família e a vida. O amor é tanto que ele tinha as borboletas tatuadas no corpo. Seu João contou, em depoimento para Carla Águas, no livro sobre o Pantanal, que ficou emocionadíssimo quando viu a metamorfose de uma borboleta por completo pela primeira vez: começando com o ovo e passando para a lagarta, até chegar à crisálida, última etapa antes de bater as asas. Chegou a chorar. “Fiquei muito emocionado. Aquilo me tocou muito. Mudei também em casa com a esposa e filhos. Soube ter mais amor e respeito com eles. Acho que a borboleta trouxe isso para mim por causa da sensibilidade, do carinho que precisava ter com elas.”
A superintendente do Sesc Pantanal, Christiane Caetano, confirma esta forte ligação. “Falar do João do Borboletário é falar da história do Sesc Pantanal, pois ele esteve conosco desde o início. E foi se transformando nestes 20 anos e transformando cada hóspede que passava pelo hotel. O amor pelo trabalho, pelas borboletas, estava na pele, no sorriso e, principalmente, no coração dele, que pulsava essa conexão com a natureza. Tudo está conectado, pessoas e natureza, e ele representava isso com sua simplicidade e sabedoria. Iletrado, ele aprendeu com os pesquisadores sobre o mundo desses pequenos insetos e compartilhava seu saber. Nosso querido João do Borboletário cumpriu sua jornada brilhantemente e ficará para sempre em nossa memória”, reforça Christiane à Plurale. O poeta Manoel de Barros, um pantaneiro de nascimento, escreveu certa vez, “Eu penso renovar os homens usando borboletas.” Não se conheceram no Pantanal, mas estamos certos de que Seu João e Manoel de Barros estão juntos, em outro plano, zelando pelo povo pantaneiro, suas águas, animais, plantas e borboletas.
Fotos de Isabella Araripe, de Plurale – Do Hotel Sesc Porto Cercado – Poconè (MT)
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