por Ricardo Abramovay* –
Como seria um mundo onde dores e limites constitutivos da condição humana fossem suprimidos? A pergunta não se refere à superação da pobreza, à redução da violência e das desigualdades, mas a algo que forma a humanidade desde, no mínimo o Velho Testamento.
Um mundo em que, contrariamente à maldição lançada às portas do Paraíso, o nascimento se emanciparia da dor da mulher e onde máquinas se encarregariam de providenciar nossa morte, de forma organizada, prevista e indolor. Um mundo em que nossa sexualidade pudesse dispensar os conflitos e os riscos de rejeição em benefício de um contato que corresponda exatamente ao que queremos. E, por fim, um mundo em que pudéssemos continuar comendo carne como fazemos hoje, sem, no entanto, a necessidade de criar animais para o abate, com todos os problemas socioambientais a que isso leva.
Ninguém sabe se um mundo assim vai surgir, mas é a ele que se dedicam inúmeras empresas, sediadas em geral no Vale do Silício — e que foram estudadas num livro-reportagem cujo título o coloca certamente como um dos mais chamativos do ano: Sex Robots and Vegan Meat. Adventures at the Frontier of Birth, Food, Sex and Death (em tradução livre, Robôs Sexuais e Carne Vegana. Aventuras na Fronteira do Nascimento, da Alimentação do Sexo e da Morte).
Sua autora, Jenny Kleeman é jornalista, documentarista premiada e articulista em alguns dos mais importantes órgãos da imprensa global.
Kleeman nos convida a uma reflexão sobre aquilo que o grande filósofo alemão Hans Jonas chamou de ética da civilização tecnológica. Não há dúvida que ciência e tecnologia são extremamente úteis e benéficas na maneira como nascemos, nas formas como nos alimentamos, nos tratamentos de nossas dificuldades sexuais e no alívio à morte dolorosa. Os problemas surgem quando cada uma destas dimensões que formam aquilo que Hannah Arendt chamava de nossa “condição humana” é capturada por dispositivos que, em última análise, acabam por nos separar da experiência, das incertezas e da dificuldade das decisões humanas. A ideia de que podemos controlar e planejar minuciosamente nossas vidas atribui às tecnologias um poder que, em última análise, nos distancia de nós mesmos.
Os quatro temas estudados por Kleeman envolvem dimensões que vão muito além da ciência. É claro que a ciência é fundamental para entender como nascemos, o que necessitamos para uma vida saudável, o que interfere em nossa sexualidade e nas razões que levam os indivíduos à morte. O que a ciência não faz e nunca poderá fazer é nos fornecer o significado (para nós e para os outros) de nosso nascimento, de nossa morte e de nossos encontros. A explicação científica não é capaz de ensinar a ninguém o sentido de sua vida e muito menos de sua morte. No entanto, são estes os temas sobre os quais várias empresas do Vale do Silício trabalham para conhecer, prever e sobretudo controlar — substituindo sua natureza humana de incerteza e dor por previsibilidade e felicidade. Felicidade cientificamente planejada.
Por que me torturar em procurar uma companhia que pode não gostar de minhas idiossincrasias ou de meu jeito de ser se posso ter um robô que, dotado de inteligência artificial, aprende ao longo do tempo quem eu sou, quais meus gostos, minhas inclinações e vai se adaptando perfeitamente e pacificamente à satisfação de meus desejos? Os fabricantes destas máquinas (que ainda não existem, mas nas quais investem-se recursos vultosos que aceleram as pesquisas para que estejam no mercado em relativamente pouco tempo) justificam sua inovação como um bem que estão trazendo à espécie humana, propiciando companhia aprazível a quem tem dificuldade de relacionamento.
As empresas estariam, claro, lucrando com esta ação benemérita — já que, sem inteligência artificial, uma boneca (há poucos exemplares masculinos fabricados) em que o silicone imprime à pele uma sensação real, tem um preço mínimo de US$ 6.000,00 e pode, dependendo do modelo, ir muito além disso. A que Kleeman visitou — e que será dotada de inteligência artificial — foi batizada de Harmony. O que se vende não é um dispositivo de masturbação, mas aquilo que acaba sendo vivido como um verdadeiro substituto da presença humana. Tudo isso com base nas mais avançadas tecnologias.
Em nome da emancipação feminina, de seu conforto e da defesa de seu lugar no mercado de trabalho, nada melhor que evitar o incômodo da gravidez por meio de tecnologias que permitem que o feto se desenvolva num ambiente artificial fora do corpo, a ectogênese.
Mas por que razão Kleeman coloca as tecnologias de fabricação de carnes a partir de células de animais (e que dispensam seu abate) junto àquelas que se voltam ao nascimento sem gravidez, à morte planejada e à robotização da vida sexual? É que, em todos estes casos, as tecnologias servem para driblar as dificuldades humanas sem que estas tenham que ser verdadeiramente enfrentadas. Em vez de reduzir significativamente o consumo de carne, por que não oferecer às pessoas uma carne cuja ingestão seja inofensiva, sob o ângulo dos problemas socioambientais trazidos pelo sistema alimentar mundial contemporâneo?
O resultado, no caso das carnes, é que em vez de estimular o consumo de mais alimentos frescos, de maior diversidade alimentar, da relação humana das pessoas com a preparação do que comem, com a socialização familiar daí decorrente, as carnes limpas transferem esta responsabilidade para a indústria. E é claro, como bem mostra o livro de Kleeman, que o produto oferecido tem que sofrer acréscimo de ingredientes químicos que nada têm a ver com alimentos para que se tornem palatáveis.
Que o mundo precisa transformar o sistema alimentar global em direção a uma alimentação muito mais saudável que a atual não há dúvida. Que a ciência tem papel decisivo nesta transformação é igualmente certo. O que preocupa é o empenho em evitar que as pessoas exerçam suas responsabilidades, ampliem suas capacidades de escolha, substituindo estes atributos humanos por dispositivos técnicos sobre os quais não têm qualquer controle.
O biólogo Edward O. Wilson inicia sua reflexão sobre “A conquista social da terra”, mostrando que “nós criamos uma civilização de guerra das estrelas, com emoções da Idade da Pedra, instituições medievais e tecnologias divinas”.
Mais do que nunca, as sociedades atuais precisam não simplesmente de mais técnica, e sim de uma discussão séria e democrática sobre o sentido e, sobretudo, a ética da civilização tecnológica.
*Ricardo Abramovay é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Foi Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).
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