por Samyra Crespo –
Falar do nosso passado recente nos traz dois estímulos: a lembrança ainda viva do que construímos e a pergunta que não quer calar – por que estamos onde estamos? Por que o desmonte que o atual governo faz da área ambiental se tornou possível?
Hoje vou falar dos auspiciosos anos 90. Uma década interessante para os ambientalistas e para o Brasil que vivia a efervescência da REDEMOCRATIZAÇÃO.
Terminada a Rio 92 que ocorreu sob Collor, acontece também o primeiro boom da cultura verde no País. Em plena Era FHC.
Foi há pouco, mas a ideia de que os oito anos em que Fernando Henrique governou se resumiram em uma “herança maldita” – tese com a qual pessoalmente não concordo – obscureceu muitas das conquistas sociais e ambientais daquele momento.
O fato é que foi uma década dedicada a reformas hercúleas: domar a inflação, varrer o “entulho autoritário” e retomar o desenvolvimento em bases modernizantes, sem o engessamento paquidérmico do Estado desenvolvimentista do período militar.
Na política externa a palavra de ordem era inserir o país na economia global.
Politicamente, o mote era: professores, voltem às universidades, e militares – retornem às casernas. Para completar: era preciso fortalecer a SOCIEDADE CIVIL.
Um dos efeitos colaterais mais perversos das ditaduras é enfraquecer os vínculos, pelo medo, entre as pessoas, grupos, impedindo associações e o coletivo de se manifestar. Enfraquece a expressão coletiva e inibe a formação de líderes. Quando uma ditadura termina, reconstruir laços de solidariedade e instituições de caráter civil é um desafio e tanto.
Por isso os anos 90 foram marcados pela proliferação de ONGs de todos os tipos, financiadas pelo fluxo de recursos via cooperação internacional e pela chegada entusiasmada das grandes ONGs ambientalistas que até então não operavam no Brasil com staff próprio. Greenpeace, WWF, Nature Conservancy, Conservation International (CI). Todas, paulatinamente, se instalaram no Brasil, trazendo a doutrina do projeto, da eficiência versus eficacia, e prescrevendo a necessidade de profissionalizar os quadros das organizações não governamentais. Erros e acertos são verificáveis nesse rumo novo, como tratarei em outra ocasião.
Por essa lista acima, pode-se ver quão longe da matriz marxista ou socialista estava o ambientalismo se movendo.
E mesmo se mudarmos nossos olhos de direção, focalizando as agendas de direitos civis, os nomes das fundações americanas é que ganham estrelinhas: Ford Foundation, McCarthur Foundation, Kellogs Foundation etc.
Do lado do Estado brasileiro, fortalecer a sociedade civil (conceito originado na filosofia politica liberal) era um imperativo programático. Na prática, significava instituir um marco legal para que as organizações pudessem operar com recursos públicos nacionais e seguir um modelo de atuação.
Mais uma vez, foi bem longe do marxismo ou do socialismo que a inspiração foi buscada.
O modelito da Comunidade Solidária (tocado pela respeitadíssima primeira dama e socióloga Ruth Cardoso) veio de um movimento americano – que floresceu na Era Bush (o pai): POINTS OF LIGHT. Suas características? Estimular a cultura de “cidadãos responsáveis por sua comunidade”. Instituir uma cultura comunitária, cidadã – que pudesse resistir aos abusos do Estado e fazer escolhas mais autônomas. Utilizar todos os recursos disponíveis numa comunidade significava incluir e não excluir. Objetivo? O desenvolvimento. Para essa tarefa foram chamados a contribuir também empresários, os clubes de serviço (Rotary, LionsClub), igrejas, universidades e naturalmente os sindicatos que estavam quase todos sob hegemonia do PT – Partido dos Trabalhadores. Nascia o TERCEIRO SETOR.
Não vou me alongar nessa análise, embora pudesse fazê-lo, pois nesta época estava atuando numa “ONG de desenvolvimento” e pude ver o conceito de sociedade civil e de cidadania evoluírem bem diante do meu nariz.
Como podem ver, nos argumentos e fatos invocados, novamente eu mostro que o ambientalismo brasileiro bebeu e se nutriu em fontes que nada têm a ver com o marxismo cultural.
Como eu disse, o dinheiro veio generoso da Holanda, da Alemanha, Canadá e Estados Unidos. Suécia e Noruega naquele momento doava mais para as ONGs de desenvolvimento e de direitos civis.
A Amazônia era a queridinha, mas não era terra para amadores. Ali estavam o CIMI – Conselho Indigenista Missionário e meia dúzia de ONGs voluntaristas. Sem internet, gente. Podem imaginar?
Com uma mídia favorável, rapidamente o Brasil começou a entender que o bioma mais ameaçado, do qual restava apenas 7% (esse número variava para 11, 8 às estatísticas eram imperfeitas) era a Mata Atlântica. Em seguida o Cerrado (a fronteira agrícola avançava sem dó) e logo toda a diversidade regional ganhou lugar nas politicas de conservação.
A Amazônia virou mito internacional, mas internamente, devido a seu tamanho e distância era apenas um lugar imaginário para a maioria dos brasileiros.
Naqueles anos, se você fosse ao Ministério do Meio Ambiente, você encontraria duas turmas com força política: a poderosa Secretaria da Amazônia, comandada por Seixas Lourenço, e o PNMA, o Plano Nacional de Meio Ambiente. O PNMA veio a ser a primeira política ambiental realmente nacional, tocada por Regina Gualda, funcionária da antiga SEMA, a Secretaria criada nos anos 70 – pelo recentemente falecido Paulo Nogueira Neto. O IBAMA, criado nos anos 80, era o núcleo duro, o verdadeiro Ministério, digamos assim, com uma equipe técnica cada vez mais qualificada.
Com um governo simpático às organizações, com dinheiro chegando do exterior sem problemas e com uma nova cartilha – a do desenvolvimento sustentável pós Rio 92 – o movimento ambiental vai literalmente ao paraíso.
Mas todo paraíso tem seu preço. E o preço, nestes anos, era a disputa intestina por agendas, recursos e influência. Começa a segmentação do movimento ambientalista.
Conto mais desse bastidor no próximo post.
Com todo o respeito, naturalmente.
Este texto faz parte da série que venho publicando no site da Envolverde/Carta Capital. Tenho como objetivo o resgate da história do ambientalismo recente, bem como mostrar como suas lutas coincidem com os interesses mais nobres da sociedade brasileira.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”.
(#Envolverde)