por Ulisses Capozzoli – 

O que um paraquedista com o traseiro posto na cadeira presidencial em Brasília classificou como “uma gripezinha, um resfriadinho inofensivo” está produzindo impacto inédito na astronomia internacional, segundo levantamento feito em março pela revista americana “Astronomy” e publicado na edição de agosto que começa a chegar às bancas e aos assinantes. Os maiores telescópios do mundo, mais de 120, estão com suas cúpulas fechadas devido ao isolamento para evitar a disseminação da Covid-19 e isso compromete mesmo as observações automatizadas.

Na Califórnia, berço da astronomia moderna, o que inclui a cosmologia, que antes dos anos 1920 integrava a filosofia e não o corpo da ciência, está com seus instrumentos paralisados, e reúne o Nickel Telescope, o Shane Telescope, o Hooker Telescope e o que foi durante muito tempo o maior telescópio de todo o mundo, o Hale Telescope. Até os anos 1920 havia uma interpretação dúbia envolvendo as “nebulosas”, estruturas que, agora sabemos, em alguns casos serem galáxias inteiras e, em outros, remanescentes da primeira geração de estrelas de massas descomunais que evoluíram rapidamente em função de seus poderosos campos gravitacionais e então explodiram sob a forma de supernovas para formar uma nova geração de estrelas, acompanhadas de planetas em que a vida, ao menos no caso da Terra, manifestou-se e evoluiu. Uma dessas gigantes pioneiras deu origem a uma ninhada de estrelas que inclui o Sol e seus irmãos, que os astrônomos buscam localizar na corpo da Galáxia, a Via Láctea. A Terra, até agora, é o único caso comprovado de vida, mas imaginar que possamos ser a única fonte desse processo no corpo da Galáxia, uma das bilhões de galáxias do universo observável, não passa do mais tardio e arcaico geocentrismo.

Uma brevíssima reflexão sobre os telescópios Hooker e Hale, na Califórnia. O Hooker, como o Hale, resultaram do esforço pessoal de um astrônomo solar de saúde precária, George Ellery Halle (1868-1938) quem convenceu grandes fortunas a patrocinar a pesquisa científica como via de acesso e permanência na história, o que ainda é uma possibilidade remota em países como o Brasil. Aqui, o esporte predileto é o saque, a pilhagem e não a construção da coisa pública, o que caracteriza a mentalidade arcaica e o anacrônico patrimonialismo que o traseiro sentado no Planalto Central cultua. O Hooker, com espelho de 2,54 metros de diâmetro e coletou sua primeira luz em 1917, foi o maior instrumento até a entrada em operação do Hale, em 1948, com pouco mais de cinco metros de diâmetro. O que significa o diâmetro do espelho, no caso de um telescópio? Imagine um funil na boca de uma garrafa e colocado sob a chuva. Quanto maior o diâmetro do funil, tanto mais água ele recolhe e introduz na garrafa. No caso de um telescópio, as gotas de chuvas são gotas de luz, ou grãos de luz, os fótons da radiação eletromagnética, a emissão de energia de todos os corpos do Universo. Mesmo os nossos corpos emitem radiação infravermelha que podem ser captados nessa janela de observação e, no Universo, identifica cometas e estrelas anãs, de fraca energia.

Edwin P. Hubble (1889-1953), o pai da cosmologia, que também foi advogado e boxeador, trabalhou inicialmente com o Telescópio Hooker e depois com o gigante Hale, na companhia de Milton Humason (1891-1972), um ex-tropeiro que dirigiu carroças transportando material para a construção dos dois observatórios localizados em Monte Wilson, em Los Angeles, na Califórnia. Humason, uma pessoa gentil e despretensiosa enfrentou as noites geladas fotografando o que ficou conhecido como “fuga das galáxias”, uma expressão para se referir à expansão do Universo, ou o espaço cósmico, que se distende como um balão de aniversário soprado pela energia do que acabou conhecido como “Grande Explosão”, o fenômeno que deu início ou reiniciou o Universo. Uma explosão, no entanto, é uma palavra simplista e simplória para se referir ao nascimento/renascimento do Universo. Ela foi criada pelo astrônomo inglês Fred Hoyle (1915-2001) num programa de rádio com sentido pejorativo. Hoyle defendeu ao longo da vida a ideia de um universo eterno e não temporal. A possibilidade de a Grande Explosão (Big Bang) ser apenas uma fase de um processo de expansão/contração cósmico viabilizaria o universo eterno de Hoyle.

Quando o Hale entrou em operação, em 1948, ao final de uma proeza para fundir seu espelho gigante, Hubble o utilizou para o profundo mergulho no Cosmos que marcou sua trajetória profissional, ainda que não tenha sido ele, mas um outro astrônomo americano, Vesto Melvin Slipher (1875-1969), o autor da hipótese de expansão do Universo, a “fuga das galáxias” que Humason fotografou e Hubble interpretou. Hubble “descobriu” esse processo ao assistir a uma palestra de Slipher.

Quanto à paralisação de grande parte dos grandes telescópios mundiais, o processo começou em fevereiro/março passado e a avaliação é que continuariam assim pelos seis meses seguintes. Telescópios podem ter suas operações automatizadas, mas isso não dispensa a presença de astrônomos nem de pessoal técnico para mantê-los em funcionamento. Alguns, n o entanto, como os que vigiam cometas e asteroides com passagem próxima da Terra, continuam em operação, num esforço humano que supera a pandemia. A questão, neste caso, não é se um desses bólidos cósmicos poderá se chocar com a Terra, mas de quando isso deverá ocorrer, no caso de sermos impotentes para fazer um desvio de suas catastróficas rotas de colisão. Ninguém nos vigia no céu e nosso único escudo é a ciência.

Ulisses Capozzoli nasceu em Cambuí, no sul de Minas Gerais. Em São Paulo, formou-se e consolidou sua carreira de jornalista científico, iniciada em 1974 no Jornal da Tarde. Em 1997, quando trabalhava no Estadão, concluiu mestrado, na USP, em história da ciência; o doutorado, na mesma instituição, em história da radioastronomia, foi finalizado em 2003. Foi editor da edição brasileira da revista Scientific American.

 

Foto: Galáxia espiral barrada NGC 1300, a 70 milhões de anos-luz de distância do Sistema Solar. Apod/Nasa.