Sociedade

Parte 18: Uma leitura sobre o luto indígena, em tempos de pandemia

Por Sucena Shkrada Resk* – 

Em entrevista ao Blog Cidadãos do Mundo, o escritor e educador Daniel Munduruku fala sobre um dos momentos mais complexos vividos por povos indígenas frente ao novo coronavírus, Este depoimento é o segundo na série de três entrevistas sobre a saúde indígena, no contexto da Covid19

Compreendemos a vivência do luto em culturas de diferentes povos indígenas no Brasil frente à perda de parentes e às restrições impostas pela pandemia da Covid-19? Este é um tema sensível e complexo na atualidade, que exige escuta e respeito. Para falar sobre este assunto, o Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk entrevistou o escritor e educador indígena Daniel Munduruku, que faz uma leitura sobre este processo, no qual também cobra políticas públicas eficientes de atenção à saúde indígena.

Ele faz sua narrativa, trazendo a experiência primeiramente como indígena, cujo povo da região amazônica também enfrenta perdas de vidas neste período, além de outras centenas de povos pelo Brasil. De acordo com levantamento da plataforma Covid-19 e os povos indígenas, mantida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), são 9.983 casos confirmados e 405 mortes entre 121 povos até dia 1º de julho.

Nesta exposição, Daniel Munduruku também traz em seu repertório, sua experiência como professor e autor de mais de 50 livros para crianças a educadores, e palestrante por diversos países. Ele é filósofo, com licenciatura em História e Psicologia, e pós-graduado nas áreas de Educação e Linguística.

Qual é a importância do luto aos povos indígenas?

O luto para a maior parte dos povos indígenas é um momento de especial recolhimento, de acordo com Daniel Munduruku. “Ao falecer uma pessoa indígena, sobretudo se for um ‘velho’, uma ‘velha’, alguém que traz dentro  de si a memória de um povo e da ancestralidade, ela é bastante celebrada. Isto acontece, porque esta pessoa vai nos olhar lá de cima, de outro lugar onde seu espírito vai permanecer”, diz.  Esta permanência tem a ver com o encontro que se dá com os seres ancestrais. “Em última análise, estes seres são os que nos mantêm, nos dão significação para a existência e que nos amparam durante a nossa passagem por este mundo”, explica.

Esta visão espiritual tem um valor muito importante para os povos indígenas. “Por isso, o momento em que estamos vivendo é muito complexo, porque desestrutura a ordem normal das coisas, a ordem espiritual. Acaba prejudicando a possibilidade de a gente chorar pelos nossos mortos e nos enlutar por eles. Dificulta fazer os rituais que os mortos precisam para que eles façam uma boa viagem até se encontrarem com nossos ancestrais”, diz.

Com a situação da pandemia hoje, Daniel expõe que há uma dificuldade muito grande de os povos indígenas fazerem a ritualização necessária. “É claro que cada povo tem sua maneira, seu próprio ritual e crenças envolvidas. Estão o tempo inteiro em uma relação entre humanos e entre seres não-humanos”.

Em muitos povos, segundo ele, é necessário que se chore a passagem do avô, da avó, para que eles possam fazer uma boa caminhada para o mundo ancestral. “Sem o nosso choro, os perigos que este espírito falecido vai encontrar pode tirá-lo do caminho. E fazer com que não siga em linha reta e demore mais tempo a chegar ao mundo espiritual. A pandemia não apenas mata o corpo da gente, mas mata também o que há de simbólico em cada um desses povos”.

Como imaginar que é possível alguém morrer e a gente não chorar e se enlutar, fazer a despedida (como acontece também com a sociedade não-indígena)? Daniel faz esta reflexão. “Os povos indígenas choram tudo que precisam chorar para que aquela pessoa querida que partiu não se torne só uma figura e imagem, mas se transforme em memória”, explica.

A importância da ritualização é tanto relacionada aos mais velhos, como também em relação às crianças. “Quando se trata de uma morte prematura, há o impacto de esta criança não ter vivido plenamente sua existência, chegando até a velhice”, diz. Nestas situações, as mães choram por seus filhos justamente porque sabem que não vão experimentar todas estas fases da vida. “Não enterrar estas crianças é praticamente proibir estas mulheres de chorar pelo espírito do filho. Não ajudar a abrir o caminho para que o espírito dele chegue aonde precisa chegar. Este é um problema muito sério que a Covid-19 tem trazido para nossos povos”, alerta.

Um inimigo invisível

Daniel Munduruku avalia que sem dúvida nenhuma há um avanço muito grande desta pandemia entre os povos indígenas. “Uma doença invisível vai se alastrando com muita facilidade dentro das culturas indígenas, porque que vivem o coletivo. Estão o tempo inteiro em uma relação muito próxima. Isto tem a ver com a organização social e política, com a organização existencial destes povos”, explica.

E o grande desafio é enfrentar esta situação. “Você imagine a dificuldade que se tem de controlar este inimigo invisível. Quando o inimigo é visível, mesmo que seja um mosquito, a gente pode se proteger melhor. O novo coronavírus vai adentrando em nossas comunidades, sem que nos demos conta disso. E afeta e infecta uma multidão de pessoas que não estão devidamente preparadas para se protegerem”, lamenta.

Com relação aos povos isolados, que estão fora do contexto urbano, a assistência é mais precária, segundo o indígena. “Para quem vive nesta condição, sequer sabe o que está acontecendo com elas e atina sobre o mal que está acontecendo. Por isso, geralmente se reúne, dança, canta para tentar espantar este mal que não conhece. É terrível pensar que este inimigo invisível, que não pode ser encontrado, é transmitido pela relação entre as pessoas. Isto é cruel”, considera Daniel.

“Ao perder nossos avós, nossos parentes mais velhos, estamos perdendo parte de nossa cultura que é repassada por eles. Isso tem um grande impacto, tanto do ponto de vista material, como espiritual. É uma perda com um simbolismo muito grande. Esses sábios são pessoas que cumprem uma função social muito importante, de curar e equilibrar estes dois mundos. (Daniel Munduruku, em Blog Cidadãos do Mundo)

Sofrimento pessoal

“Eu particularmente tenho sofrido muito por conta disso. O que podemos fazer é gritar bem alto sobre a importância do isolamento, de tentar fechar as fronteiras com a zona urbana e evitar aproximação com parentes de outras aldeias ou de outros contextos urbanos, e com não-indígenas,  para não levar o vírus para estes locais (vice-versa). Infelizmente é isto que tem acontecido”, constata.

Políticas públicas ineficientes

Daniel Munduruku critica a atual condução das políticas públicas nesta pandemia. “Quando a gente fala de política pública neste governo, é quase que uma negação, estamos desgovernados. Se este governo não dá a devida assistência às pessoas que estão próximas a ele, imagine se dará às pessoas que estão mais distantes. Não fazendo isso, deixa de fora o atendimento necessário às comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas que são as mais afetadas e estão no elo fraco desta corrente, porque estão mais afastadas”.

E desabafa – “Estamos vivendo uma catástrofe sanitária, sobretudo na saúde pública, que tem se mostrado corajosa nos centros urbanos, mas não está conseguindo chegar a todos os lugares. Caberia ao Estado brasileiro tomar atitudes sérias. Precisamos de um governo operante, comprometido e que seja capaz de se sacrificar pelo seu povo”, reivindica.

Segundo Daniel Munduruku, nem nos grandes centros urbanos, há uma cobertura eficiente. “Quando existe é pelo desempenho de governadores e de prefeitos. No caso do povo Munduruku e de outros povos, a perda de muitas vidas que está acontecendo é algo catastrófico. Nada é tão pior do que a gente perder uma batalha por conta deste descaso”.

*Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada há 28 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk (www.cidadaosdomundo.webnode.com), desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e sustentabilidade.

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