por Maíra Mathias e Raquel Torres, Outras Palavras –
Partidos políticos abrem, no tribunal, ações com sentidos opostos. Se transferir decisões a Estados e Municípios, tribunal pode comprometer Programa Nacional de Imunizações. E mais: na trilha de Trump, Brasil dá calote na OMS e na ONU
PARA ENTRAR NO RADAR
Pelo menos sete ministros do Supremo já sinalizaram nos bastidores que, se necessário, tomarão posição pela obrigatoriedade da vacina contra o coronavírus por entenderem que o direito coletivo à saúde se sobrepõe à liberdade individual. Mas isso pode acontecer não no âmbito das ações que alguns partidos moveram diante do novo cavalo de batalha do presidente Jair Bolsonaro, e sim no julgamento de outro caso, do qual já falamos por aqui.
Trata-se de uma disputa que vem sendo travada desde 2019 por pais de uma criança e o Ministério Público de São Paulo. Eles se recusaram a vacinar o filho, então com três anos, por serem “adeptos da filosofia vegana”. O MP entrou na Justiça para obrigá-los a cumprir o calendário da vacinação infantil.
O recurso dos pais chegou ao STF em maio. Em setembro – portanto antes da crise atual da vacina, mas já depois das primeiras declarações de Bolsonaro na direção da não obrigatoriedade de imunização transformadas em propaganda pela Secom –, os ministros decidiram que esse julgamento deveria ter repercussão geral. Ou seja, o que ficar decidido vai passar a valer para todos os casos similares no país.
Esse caso precisa entrar no radar por duas razões. Em primeiro lugar, e como nota o Estadão, nenhuma das ações movidas pelos partidos pede explicitamente que se decida sobre a obrigatoriedade da vacinação no Brasil. Elas miram nacos mais restritos desse universo.
O PTB pede que o Supremo declare inconstitucional o trecho da lei sancionada este ano pelo próprio Bolsonaro que prevê a compulsoriedade da vacinação como parte das medidas de enfrentamento da crise sanitária. O partido é base do governo. Já o PDT quer que o STF reconheça a competência de estados e municípios para determinar ou não a vacinação compulsória da população. O caso da criança paulista, ao contrário, aponta para uma discussão mais ampla: as vacinas infantis previstas no Programa Nacional de Imunizações devem ser compulsórias?
A segunda razão para prestarmos atenção é que esse julgamento pode acontecer antes (até porque, segundo apurações da imprensa, tem gente no Supremo que prefere evitar o embate com Bolsonaro enquanto ainda não há vacina aprovada pela Anvisa). O relator do caso é Luís Roberto Barroso, que já declarou que sua visão será a de “valorização da ciência e do conhecimento técnico”.
A AÇÃO DO PDT
De todas as quatro ações movidas por partidos, a do PDT é a que rende mais pano para manga do ponto de vista de quem se interessa por políticas de saúde. O partido quer que o Supremo siga o mesmo entendimento de abril, quando definiu que fazia parte da esfera de competências locais decretar quarentenas. Agora, prefeitos e governadores poderiam ter diante de si o poder de estabelecer se a campanha de vacinação contra o novo coronavírus será compulsória ou não.
Segundo o Estadão, “nos bastidores do STF, a leitura é que o tribunal deverá, no mínimo, abrir caminho para que estados e municípios imponham a vacinação obrigatória – mas também é possível que já seja tomada uma definição no sentido da obrigatoriedade da vacina de covid-19, se e quando houver um imunizante com eficácia garantida”. Ou seja, a ação pode levar a uma interpretação mais ampla por parte dos ministros. Mas se a corte se restringir ao escopo do que pede o PDT teremos um dilema pela frente.
Isso porque, como lembra o sanitarista Reinaldo Guimarães, o Programa Nacional de Imunizações tem uma lógica vertical desde que foi criado, em 1973. “Historicamente, todas as campanhas nacionais de vacinação são verticalizadas, tendo o PNI no topo da coordenação. Campanhas estaduais quando o alvo é nacional ocasionarão uma imensa confusão e desperdício. Se houver a autorização estadual para a definição de obrigatoriedade ou não de tomar a vacina, a confusão se completará”, escreve no site da Abrasco.
A razão para isso é simples: as pessoas circulam. Mudam de cidade, passeiam, trabalham num local e moram em outro. As doenças preveníveis por vacina não teriam sido controladas no passado se a cobertura de um imunizante variasse muito, sendo de 95% em um local e 50% em outro.
De um certo ponto de vista, pode parecer positivo que a decisão pela obrigatoriedade desta futura vacina seja local. Mas isso pode fazer com que campanhas que já funcionam nacionalmente há décadas sejam sabotadas por este ou aquele chefe de Executivo. E num momento em que as coberturas vacinais estão em vertiginosa queda por vários motivos (apenas 35% das crianças foram vacinas contra pólio até agora no Brasil).
Pensando especificamente na covid-19, há outro fator que devemos levar em consideração – e que foi ressaltado pelo jornalista Álvaro Pereira Jr no podcast O Assunto. É que as primeiras vacinas a serem aprovadas emergencialmente provavelmente não serão aquelas com os maiores níveis de eficácia. Os imunizantes estão na faixa dos 50%, ou seja, a cada cem pessoas vacinadas, só metade estará efetivamente protegida do vírus. Isso tem repercussões para o restante das ações de enfrentamento – que não podem ser simplesmente abandonadas em nome do ‘velho normal’ – e para o índice de cobertura vacinal.
Então, mesmo que seja obrigatória, uma vacina com 50% de eficácia deixa uma margem considerável de suscetíveis. Se a decisão sobre vacinar ou não for fragmentada, o nível de proteção coletiva tende a ficar ainda mais instável.
Em outros tempos, o esperado seria investir muito em comunicação para convencer as pessoas sobre a importância de tomar a vacina. Com o presidente jogando contra, tudo fica mais difícil.
REFORÇANDO O VIÉS
Jair Bolsonaro voltou a falar sobre vacina ontem. Em uma transmissão feita por um canal pró-governo, declarou a apoiadores: “Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe”. Como diria o general Ramos, depois de esticar a corda, o presidente se faz de inocente…
Tem mais: “Eu dou minha opinião pessoal: não é mais fácil e barato investir na cura do que na vacina? Ou jogar nas duas, mas também não esquecer da cura? Eu, por exemplo, sou uma testemunha. Eu tomei a hidroxicloroquina, outros tomaram a ivermectina, outros tomaram Annita e deu certo”, propagandeou pela milésima vez.
O presidente também voltou a incidir sobre um debate que seria muito razoável – a necessidade de não se apressar a aprovação de uma vacina – do seu jeito peculiar, colocando em dúvida o esforço científico internacional para criar a tecnologia em tempo recorde: “Pelo que tudo indica, todo mundo diz que a vacina que menos demorou até hoje foram quatro anos, não sei por que correr em cima dela.”
É preciso medir se o esforço que Bolsonaro vem construindo desde terça passada para desacreditar a vacinação impactou na disposição dos brasileiros em tomar um imunizante. O Datafolha de agosto mostrava que 89% estavam dispostos a se vacinar.
Mas uma pesquisa mostra que Bolsonaro pode contribuir para aumentar temores já instalados em uma parcela da população, dado sua campanha para difamar a vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
Levantamento da UnB feito entre 23 de setembro e 2 de outubro – portanto, antes da crise – mostra que já existia um viés em relação à CoronaVac. Quando perguntados sobre intenção de se vacinar, sem indicação da origem do imunizante, 78% dos entrevistados responderam que sim. Mas quando a pergunta incluiu a China como origem, a intenção diminuiu em 16,4%.
Curiosamente no caso da vacina russa – que, de fato, ainda precisa de mais transparência nos resultados dos testes – a queda é ligeiramente menor, de 14,1%. As menos rejeitadas são vacinas com origem nos EUA (-7,9%) e a vacina de Oxford/AstraZeneca (-7,4%) – que é a principal aposta do governo federal. Foram ouvidas 2.771 pessoas.
RESULTADOS COM IDOSOS
A AstraZeneca anunciou ontem que sua vacina contra a covid-19 mostrou, nas fases 1 e 2 dos testes, respostas imunológicas similares em idosos e jovens, e menos reações adversas entre os mais velhos. A notícia é interessante, já que uma das maiores preocupações em relação à vacinação é saber o quanto os imunizantes em desenvolvimento podem de fato proteger os grupos mais vulneráveis ao coronavírus. A farmacêutica e a Universidade de Oxford não publicaram esses resultados. Na verdade, isso não foi feito nem mesmo em um comunicado por escrito à imprensa. Quem deu a notícia foi o Financial Times, e a AstraZeneca confirmou as informações em seguida.
A resposta imunológica significa que o corpo reagiu de alguma forma à entrada do vírus – segundo o jornal, foi identificada a produção de anticorpos e de células T –, mas não é sinônimo de proteção. Falta o tão aguardado resultado da fase 3, que vai comprovar e medir a eficácia.
Na última sexta, os ensaios com essa vacina foram retomados nos Estados Unidos. Eles foram paralisados no mundo todo em setembro, depois que um paciente desenvolveu sintomas neurológicos; já haviam voltado em todos os países, menos lá.
PARÂMETROS PARA ESCOLHER
Embora se cobre dos governos a definição de grupos prioritários para a vacinação, já assinalamos por aqui que os critérios podem não ser tão óbvios, porque não se sabe como exatamente os imunizantes testados protegem cada grupo da população. Esse alerta foi feito ontem pelo Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças. A agência publicou um documento listando 24 dados que seriam necessários para desenhar as políticas de imunização para aproveitar os recursos da melhor maneira.
O relatório aponta que a vacinação de profissionais de saúde é mesmo essencial; quanto aos outros grupos, seria preciso ter dados mais concretos para decidir. “A identificação dos grupos prioritários, e das camadas dentro deles, dependerão de vários fatores, incluindo a epidemiologia da doença no momento da implantação da vacina, a evidência de risco de doença grave e de exposição ao coronavírus, a preservação de serviços sociais essenciais e princípios de equidade, entre outros”, afirma a agência.
A apreensão sobre a eficácia das vacinas de covid-19 para idosos tem sido relatada há tempos. No caso da gripe comum, sabe-se que a vacina não é tão eficaz para os mais velhos, e estudos têm demonstrado que a melhor forma de proteger idosos é imunizar crianças, os principais propagadores dessa doença.
Para a covid-19, também há preocupação com outros grupos que apresentam maior risco de ter formas graves da covid-19: as pessoas obesas. Estudos sobre vacinas contra influenza, hepatite B e raiva mostraram respostas reduzidas em obesos, em comparação com as pessoas magras.
SUTILEZAS
“Para estarem seguras, as pessoas precisam estar livres da ameaça de danos físicos ou mentais. Mas para se sentirem seguras, as pessoas precisam estar livres da percepção do dano potencial“; essa passagem é o cerne de uma longa matéria publicada no site The Atlantic, que, apesar de tratar muito especificamente da compreensão de segurança nos Estados Unidos durante a pandemia, com certeza pode servir para reflexões sobre a situação brasileira e em outras partes do mundo.
A repórter Amanda Mull parte de explicações sobre como o medo é um sentimento primitivo e pouco racional, e defende que a necessidade de pertencer a um determinado grupo (precavidos ou negacionistas da pandemia) acaba forçando as pessoas a adotar algumas ações que nem sempre fazem sentido. No caso dos negacionistas, toda a falta de noção que cansamos de denunciar aqui, como aglomerações de gente sem máscara. Do lado dos precavidos, um excessivo apontar de dedos para eventos que apresentam risco mínimo, como encontros ao ar livre entre pessoas mascaradas. Isso pode ser evitado quando as autoridades mandam à população mensagens claras e diretas. Nos Estados Unidos, como no Brasil, cada pessoa acaba precisando aprender a tomar decisões por conta própria. Com isso, elas “traçam seus caminhos com base em sua personalidade, em como vêem o mundo e como se relacionam com o risco”.
Mas um ponto algo inusitado da matéria que nos chamou a atenção foi a relação que Mull traça entre a exposição ao risco e uma certa ‘cerimônia’ que existe entre pessoas próximas, incluindo por parte daquelas que estão conscientes dos perigos e tomam seus cuidados. “Mesmo com as mensagens confusas vindas de cima, a segurança na era da pandemia seria um pouco mais clara de se negociar se falar sobre nosso comportamento e fazer perguntas sobre os outros não fosse tão dolorosamente incômodo. Garantir a segurança da pandemia requer interrogar entes queridos sobre com quem eles estiveram e o que estão fazendo, e se foram testados recentemente”, escreve a repórter.
Com isso, ela faz uma interessante comparação com a saúde sexual “A dinâmica da saúde pandêmica e da saúde sexual torna as pessoas ansiosas e tímidas de maneiras muito semelhantes, em relação a tipos de precauções muito semelhantes. Você deveria se recusar a ir ao casamento de sua prima, a menos que ela o faça ao ar livre? Você deveria dizer ao seu amigo sem máscara para se mascarar?”. Para uma educadora sexual entrevistada, Logan Levkoff, essas situações ainda são cobertas por estigma e vergonha, assim como as que envolvem a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. “Você não pode presumir que alguém em quem você confiou por anos não vai expô-lo a uma doença mortal (…). As pessoas se sentem mal por impor seus limites ou simplesmente se cansam da vigilância constante”, escreve Mull.
NO MUNDO
Neste mês, o mundo já bateu nove vezes o recorde de novos casos diários de covid-19. A Europa tornou-se novamente epicentro da pandemia; nos Estados Unidos, hospitais já traçam planos para racionar atendimentos, preparando-se para a falta de leitos. Dessa vez, o aumento dos casos acontece no país inteiro ao mesmo tempo, e não da forma localizada como aconteceu antes.
NADA PARA A OMS
Em plena pandemia, o Brasil não pagou nada da sua cota como membro da Organização Mundial da Saúde (OMS). A informação é de um levantamento do Valor que mostra que a inadimplência se estende para outros braços da própria ONU e para outros organismos internacionais. A previsão era destinar R$ 4,2 bilhões para esses compromissos em 2020, mas até agora foram pagos apenas R$ 15,4 milhões.
EM SITUAÇÃO PRECÁRIA
Como sabemos, as ações do governo federal para proteger a população indígena foram quase nulas; quando houve, aconteceram com enorme atraso, e sob pressão do STF. No começo de julho, Bolsonaro sancionou uma lei vinda do Congresso aprovando um plano emergencial. Entre outros pontos, o texto estabelecia a garantia de segurança alimentar e nutricional e determinava que a distribuição de cestas básicas seria feita principalmente pelo poder público. Só agora, três meses depois, o presidente editou uma medida provisória abrindo crédito para a compra de alimentos para indígenas, quilombolas e pescadores artesanais. A verba vai garantir o abastecimento de 612 mil famílias por três meses.
Desde o começo da pandemia, era esperado que o garimpo e o desmatamento abrissem caminho para o coronavírus nas aldeias. Uma pesquisa trouxe dados concretos e comprovou essa hipótese, ao cruzar dados da Sesai com informações do Deter (o sistema do Inpe que capta o desmatamento na Amazônia em tempo quase real). Os resultados indicam que essas duas atividades geraram pelo menos 22% de todos os casos de covid-19 confirmados em povos indígenas até o fim de agosto. “Nos municípios que têm desmatamento e mineração ilegal, os casos de covid sobem 179%, em média”, diz o economista Humberto Laudares, autor do estudo e pesquisador da Universidade de Genebra, na Suiça.
BARROS STRIKES AGAIN
Quem acompanhou a passagem de Ricardo Barros pelo Ministério da Saúde teve uma sensação de déjà-vu ontem. Ficou famosa a entrevista que ele concedeu à jornalista Claudia Collucci logo que tomou posse como ministro do governo Temer. Nela, o político usava o exemplo grego para defender uma nova Carta Magna. “A Constituição Cidadã, quando o Sarney promulgou, o que ele falou? Que o Brasil iria ficar ingovernável. Por quê? Porque só tem direitos lá, não tem deveres. Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias, e em outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las”, disse na época.
Ontem, inspirado pelo plebiscito chileno – que, aliás, deve resultar em diretrizes constitucionais que ampliem o direito à saúde –, Barros voltou a advogar a ideia. “Acho que devemos fazer um plebiscito, como fez o Chile, para que possamos refazer a Carta Magna e escrever muitas vezes nela a palavra deveres, porque a nossa Carta só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a nação”, disse, completando depois que o governo não dá conta de “entregar todos os direitos que a Constituição decidiu em favor de nossos cidadãos”.
Barros, mais uma vez, ocupa uma posição de poder e é líder do governo na Câmara dos Deputados. Quando tinha a caneta no ministério, tentou emplacar na ANS uma resolução que buscava contornar a legislação dos convênios médicos para criar ‘planos de saúde populares’, cortando financiamento público e empurrando a população para o mercado nos moldes do Chile de Pinochet.
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