Por Danilo Mekari –
A cena é comum em muitas cidades brasileiras: no cruzamento de grandes avenidas, o semáforo fica vermelho, a criança passa de carro em carro deixando no espelho retrovisor um pacotinho de balas com uma mensagem de esperança. Custa um real. Dentro dos veículos, uma garota no banco de trás está vidrada no microtelevisor estrategicamente postado à sua frente; no automóvel vizinho, um menino brinca com o smartphone de seus pais.
São retratos distintos da vida moderna, no qual o espaço da infância na cidade está escondido, indefinido, momentaneamente perdido. As lembranças de gerações anteriores deixam a certeza de que, não muito antigamente, a rua era o principal palco das travessuras e brincadeiras infantis, sendo um componente essencial de seu desenvolvimento motor, físico, emocional e cognitivo. Era na via pública que a criança enfrentava desafios e se relacionava com seus pares.
Hoje, raros são os gestores públicos com disposição e coragem para implementar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da criança em espaços públicos. Como o Portal Aprendiz mostrou na semana passada, algumas escolas têm quebrado esse paradigma, tirando as crianças do espaço escolar e promovendo trajetos educativos pela complexidade urbana. Esta reportagem dá sequência ao assunto, mostrando grupos, coletivos e iniciativas que contribuem para devolver a cidade para as crianças.
Surgido no ano 2000 e formado por artistas que vivem em São Paulo, o Grupo Contrafilé desenvolve trabalhos de intervenção pública que promovem encontros entre diversas pessoas, coletivos e comunidades. Entre eles está o Parque para Brincar e Pensar, ideia levada a cabo em 2011, no Jardim Miriam (zona sul), com a intenção de reunir pessoas de diferentes gerações, formações e classes sociais na construção de um espaço comunitário de lazer e reflexão. “Um território de invenções”, define o Grupo em texto, “no qual o maior conteúdo é a brincadeira”.
Para a artista e educadora Joana Zatz Mussi, integrante do Contrafilé, a brincadeira está associada à invenção do que é público, comum e social. “Nosso objetivo sempre foi reconectar a criança, o jovem, o idoso e o adulto, misturando as sabedorias próprias de cada fase da vida. É necessário que isso aconteça para a criança voltar a brincar no espaço público”, afirma. Com a mesma finalidade e participação da comunidade no processo de criação surgiu o Quintal, parque situado no Jardim dos Químicos, em São Bernardo do Campo (SP).
Ambos os espaços são decorrentes do projeto A Rebelião das Crianças, iniciado em 2005 após revoltas ocorridas no sistema socioeducativo. Na ocasião, o grupo discutiu as narrativas dos acontecimentos pela grande mídia, as escolhas das palavras “internos”, “infratores” e “marginais” para definir os adolescentes em conflito com a lei. “A construção das narrativas sociais também é espaço público. Afinal, ele não é só concreto e asfalto, é muito mais complexo do que isso: é onde, quando e como o comum acontece”, defende Joana.
Em sua opinião, os tais “marginais” eram apenas crianças que nunca tiveram seus direitos protegidos e sintetizavam a condição de milhares de meninos e meninas brasileiros que tiveram a infância roubada. O grupo, então, promoveu ações diretas no espaço público com crianças moradoras de rua, excluídas do “comum”, pintando viadutos e criando balanços junto com eles. “A ideia era construir uma intervenção local que, a partir da circulação de imagens, pudesse intervir de uma maneira surpreendente na imaginação coletiva.”
Desde o início de 2015, o coletivo Apé – Estudos em Mobilidade realiza o projeto Exploradores da Rua em duas escolas públicas da capital paulista. Nele, percorrem trechos da cidade e estimulam as crianças a trabalharem com o espaço público que vivenciam durante os passeios. No centro, alunos da EMEI Armando de Arruda saem da Praça da República e vão até o Theatro Municipal; na zona oeste, estudantes da EE Brasílio Machado vão da escola até o Instituto Tomie Ohtake.
Com binóculos, lupas e saquinhos para coletar materiais, os pequenos se dividem em grupos de dez, vestem coletes e estão prontos para desbravar a cidade. Uma grande mão colorida serve como referência do trajeto, que será guiado por integrantes do Apé e docentes. No retorno ao espaço escolar, há atividades como desenhos do percurso e perguntas sobre o que as crianças gostariam de melhorar naquele trecho da cidade.
“Para nós, colocar a criança na rua é conquistar esse território. A meta não é ir lá e ficar fazendo passeios, mas sim desenvolver com as professoras os métodos e inteligências de como fazer isso”, explica Júlia Anversa, arquiteta e integrante do coletivo. Antes de sair pela cidade, o coletivo participou de dois encontros com as crianças, reuniões com docentes da escola e encontros presenciais com as famílias.
O coletivo propõe uma mudança de mentalidade: criando uma narrativa de exploração, adequada à linguagem infantil, a criança descobre que a rua é mais um território que pode ser explorado. “Os planejadores urbanos não levam em conta a presença delas no espaço público. E vira um ciclo: cria-se a imagem de perigo, tira-se as crianças da rua e vai ficando cada vez pior. A ponto de causar espanto sair com as crianças na rua”, observa Julia, lembrando que os cidadãos param, olham e tiram fotos com os pequenos exploradores. “Isso mostra como a presença da criança na cidade está desnaturalizada.”
Visitar museus, parques e espaços educativos – a chamada excursão – não é novidade para muitas escolas. A maioria, porém, contrata ônibus particulares para deslocar seus estudantes, proporcionando uma experiência de cidade muito menos impactante. “Quando se vai a pé, cria-se uma percepção e noção de pertencimento maior do que quando se vai de ônibus”, aponta Marieta Ribeiro, também arquiteta e integrante do Apé.
“Passeios de ônibus normalmente são para lugares marcados e não desenvolvem a sua relação com a cidade. Não são atividades inválidas – muito pelo contrário –, mas os nossos percursos não precisam de um ponto de referência, porque a referência é a cidade”, ressalta Julia.
Em texto publicado no final de 2014, a urbanista Irene Quintáns discorre sobre recentes estudos científicos que evidenciam a relação entre a atividade física na infância e o desenvolvimento cognitivo da criança. Um deles mostra que caminhar ou pedalar de casa até a escola, se comparado com quem vai de carro, aumenta a concentração dos pequenos até o fim do período das aulas e na execução de tarefas complexas. Outro comprovou que um programa de exercício físico com a duração de três meses fez aumentar a nota nas provas de matemática e leitura das crianças.
“Andar é um incentivo a mais para outros exercícios. Se a pessoa não se propõe a andar, é muito difícil que busque outras formas de exercício que vão ajudar na sua saúde. Além disso, ela vê mais pessoas, cruza olhares, uma coisa que dentro do carro não existe”, observa o jornalista Rafael Drummond, também do Apé. “O deslocamento ativo é bom não somente para a sua saúde, mas também ao poluir menos”, lembra Julia. Marieta aponta ainda a questão da saúde mental. “Andar ajuda a relaxar, a ter o seu tempo para pensar em outras coisas, fugindo do stress do trânsito.”
“Vivemos sob a política do medo”, reflete o artista plástico e cenógrafo Roni Hirsch, “que aprisiona a criança dentro de casa, do clube, do condomínio, e a grande commodity virou a segurança. Se não atuarmos no sentido contrário – apresentar à criança o território que é dela, e promover a partir da apropriação o surgimento de uma nova visão de cidadania –, ficaremos preso a essa ideia de promover segurança a qualquer preço.”
Para dar vida à sua inquietação, Roni idealizou o ErêLab, laboratório de criação de objetos e espaços de brincar, interagir e participar. “São objetos de grande porte lúdicos para espaços públicos, interativos, instalações lúdicas. Não quero cair na ideia do brinquedo e do playground básico: em seu espaço livre, a criança pode criar muito mais do que isso”, aponta.
Entre as criações do ErêLab estão uma casa palafita, um horizonte baseado no skyline de São Paulo, pedras de borracha feitas com pneus reciclados e triturados, labirintos com peças de encaixe inspirados no design modernista. O cenógrafo ressalta que o Brasil não investe em espaços públicos infantis desde a década de 1970, e reclama que os playgrounds atuais possuem os mesmos brinquedos da sua infância: gira-gira, balanço, gangorra e trepa-trepa. “É uma perspectiva cruel, não há investimento público nem política pública para as crianças.”
Roni critica o número de praças de São Paulo sem estrutura necessária para atrair as famílias. “Temos quase seis mil espaços verdes na cidade e muitos estão sem uso, alguns inclusive viram rotatórias de carros. Abandono, falta de uso, tem terra e árvore, mas não tem banco para sentar, banheiro público, lixeira, brinquedo, nada”, lamenta. “Ao invés de grandes estruturas em poucos espaços da cidade, como o Parque Ibirapuera, temos que ter sempre pequenas estruturas de brincar em todos os bairros, para a comunidade se encontrar, criando uma rede de famílias e apoio que passa a cuidar da praça.”
Para ele, é grande a demanda para que isso aconteça, mas não há consciência coletiva de que ela existe. “O espaço da criança não é somente da criança, mas sim da família. Se ela está confortável nesse espaço, a criança também estará. Tem que ter banco, mesa, banheiro público. A criança não toma decisão sozinha, precisa-se atrair a família como um todo.”
A depender do sistema político e econômico vigente, as crianças estarão fadadas a viver suas infâncias em espaços protegidos da violência e desordem da cidade real. No entanto, Joana vê uma discrepância social: “O confinamento é geral. A criança rica está confinada no condomínio, a pobre está presa na Fundação Casa”, dispara. Citando a possível redução da maioridade penal no Brasil, a educadora aponta para a existência de um extermínio da criança e do jovem.
“A criança é ameaçadora. Como adulto, vivemos nesse espaço enganoso de que tudo está pronto e dado, nada vai mudar, há uma desesperança completa. Já a criança não possui essa fragilidade, pelo contrário, simbolicamente ela significa a máxima potência: tudo o que pode, o possível, o futuro. O adulto quer diminuir essa potência fragilizando, oprimindo, prendendo, disciplinando, matando.”
Os integrantes do Coletivo Apé acreditam que os trajetos educativos permitirão que as crianças olhem para a rua de uma nova maneira. “A partir desse momento, ela terá menos preconceito com esse espaço, vai olhar no futuro de uma forma diferente, buscando a mudança e a apropriação do espaço público”, afirma Rafael. “É muito diferente o seu desenvolvimento quando se está na rua, vendo as desigualdades mais de perto, assim como os problemas e qualidades”, conclui Julia.
Já Roni aponta para a necessidade da criança ter vivências e experiências na cidade. “Se isso não acontecer, elas não entenderão de cidade no futuro. Se só andarem de carro e viverem em condomínios fechados, só vão eleger políticos que privilegiam carro, fortalecem a politica do medo e só pensam em segurança. Se elas se sentirem confortáveis no espaço urbano, se apropriarem dele, poderão questionar as ideias postas e propor melhorias e transformações no futuro.” (Portal Aprendiz/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Portal Aprendiz.