por Samyra Crespo – Infância e Preconceito
Terminei meu texto anterior dizendo que o território físico da infância era o quintal e o bairro. Conhecíamos a maioria das pessoas e as pequenas casas de comércio: o armazém para cereais, secos e molhados; a padaria, a quitanda, o açougue.
Picolés e doces os ambulantes passavam nas ruas, de casa em casa. Era o tempo do desabastecimento, sempre havia fila para comprar algo como leite ou açúcar, e era também o tempo da confiança – pois era comum comprar fiado e ter caderneta no armazém, paga no fim do mês. Meus pais eram funcionários públicos da Rádio Itacolomi de BH.
Meu pai (padrasto na verdade, pois fiquei órfã aos 5 anos) diretor do núcleo de novelas, minha mãe radioatriz. Ambos escreviam programas e por isto havia máquina de escrever em casa. Tinha também uma BARSA velha, faltando alguns volumes. A enciclopédia era o “google” da época. Tinha dicionário, Revista X_9, dedicada a crimes e escândalos, Readers Digest e para nós, crianças, revistinhas infantis tipo Luluzinha e Pato Donald. Nada de Monteiro Lobato. Na escola líamos sobre as lendas brasileiras e vida dos santos. E só.
Uma estante cheia de livros era imagem da casa do meu avô, engenheiro, maçom e que não perdia tempo com crianças.
Por serem “artistas” nos vestíamos na moda e meu pai tinha até um carro esportivo, um luxo já que a maior parte das pessoas não tinha televisão, telefone e sequer geladeira.
Era comum telefonar na farmácia, assistir TV em casa dos vizinhos e assar o pernil do Natal na padaria.
Na minha casa havia o mundo das crianças e o dos adultos. Estes mundos não se misturavam. Criança não tomava café, mas achocolatado Toddy ou mate. Criança não falava palavrão. Filho da puta era filho da mãe e se ouvíamos alguém mandar outro se F… era de corar, uma tremenda humilhação.
Brincar de médico e outras traquinagens sexuais marotas era comum, e longe dos olhos dos adultos. Nada que hoje eu classifique como violento ou traumático.
Nossa vida se desenrolava com as outras crianças, vizinhos, primos, todos tinham famílias grandes; ter dois filhos, era uma excentricidade, ter “filho único ” uma lástima.
A supervisão das brincadeiras era feita por babás ou empregadas jovens e iletradas, que vinham do interior. Muitas nunca tinham calçado um sapato na vida e se espantavam com o interruptor de luz. Era brutas, talvez porque tivessem sido assim tratadas. O castigo mais comum era beliscões violentos, tapas e surras de cinto. Se exagerassem eram despedidas.
Em Minas elas eram brancas, em Salvador pretas retintas de sorrisos largos. Tive uma que era rezadeira e me “rezava” toda tarde com um galhinho de arruda. Contra mau olhado já que me considerava muito bonita e alvo de inveja.
Meus pais não frequentavam igrejas nem nos levavam à missa. Minha mãe viúva e meu padrasto desquitado não eram um casal convencional: coisa de gente “do Rádio” – lembrando que o Rádio era o grande veículo de massas e as radionovelas pop.
Por isso o problema da religião foi resolvido nos matriculando em escola católica. Ampla e arejada, tão organizada, sem nenhuma madre preta em terra de pretos. Salvador tinha duas cidades, a alta e a baixa. A baixa era uma lixeira, ruas imundas, fedorentas com o calor, com gente que tinha vindo ou tinha um pé na África. Contrastava com a BH limpinha e católica. Assim, muito cedo comecei a achar que preto era macumbeiro, sujo e sem educação.
Em Minas eu vivia num ambiente social mais homogêneo e o preconceito era relativo aos costumes: gente casada e gente que vivia em pecado; os artistas, essa gente liberal que sai e bebe à noite e que tem vida desregrada. Meu padrasto e minha mãe não bebiam nada. Meu pai biológico, do mesmo meio, morreu de cirrose hepática.
O preconceito de cor veio com a vida na Bahia, eu na escola das freiras branquinhas com medo da macumba e daquelas comidas estranhas. Esperávamos o caminhão que vinha com verduras de São Paulo, uma vez por semana. E isso já eram anos 60′.
Mas o preconceito, pra valer, foi tomando corpo em São Paulo, para onde fomos morar definitivamente e onde vivi a minha vida de jovem, e adulta.
Onde a vida “cultural” no sentido letrado começou a acontecer.
… continua no próximo Post.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.
Este texto faz parte da série que estou escrevendo sobre os anos da minha formação e de como me tornei ambientalista nos anos 90.
(#Envolverde)