Por Edison Veiga, Deutsche Welle Brasil –
Com a suspensão das aulas presenciais, iniciativas buscam maneiras de contornar falta de acesso à tecnologia. Pesquisa aponta que quatro em cada dez alunos da rede pública no Brasil não têm acesso a computador.
Num país em que educação pública e privada são tão desiguais, a pandemia de covid-19 agravou ainda mais a discrepância entre o ensino recebido em uma rede e outra. Com a suspensão das aulas presenciais, uma parte considerável dos 45 milhões de estudantes de escolas públicas do Brasil passou a nem sequer ter acesso às aulas.
Tal cenário obrigou organizações que já trabalhavam para melhorar a qualidade da educação pública a se reinventar – e oferecer equipamentos e sistemas online para essa parcela passou a ser prioridade.
Criador do projeto Constituição na Escola, o advogado Felipe Costa Rodrigues Neves conta à DW Brasil que precisou revisar todo o plano de 2020 diante da pandemia. A ideia original, de levar conhecimento sobre a Constituição brasileira a 30 mil alunos da rede pública em São Paulo e Salvador de forma presencial, acabou sendo substituída, em um primeiro momento, pela criação de conteúdo online. “Mas esbarramos na questão da falta de condição de acesso”, diz o advogado.
De acordo com a pesquisa TIC Educação 2019, divulgada em junho, 39% dos alunos de escolas públicas no Brasil não têm nem tablet nem computador em casa.
“Refletimos bastante sobre esse cenário”, comenta Neves. “A preocupação não era só com o nosso conteúdo, mas principalmente com o conteúdo principal para eles, ou seja, as aulas em si. A grande maioria precisava assistir pelo celular do pai ou da mãe. Imagina só: dividir o celular com dois ou três irmãos, e ainda com o pai ou a mãe que precisam do aparelho para trabalhar.”
Os responsáveis pelo projeto, criado em 2014, resolveram, então, fazer uma campanha. Em 40 dias, arrecadaram 150 mil reais – destinados à compra de 400 tablets novos – e cerca de 600 laptops e tablets usados, doados a alunos.
Também o projeto Gauss, que desde 2013 seleciona talentos do ensino médio e os beneficia com bolsas em cursinhos pré-vestibulares para ajudá-los a conseguir vagas em universidades públicas, esbarrou em problema semelhante.
“No momento em que os cursinhos se reinventaram para as plataformas online, tivemos que garantir que todos os nossos bolsistas tivessem acesso a um computador com internet para estudar, o que foi possível por meio de parcerias e aluguel de notebooks”, diz à DW Brasil o engenheiro Samuel Guimarães Filho, um dos idealizadores da iniciativa.
Parte fundamental do projeto, de São Paulo, as mentorias com voluntários já inseridos no mercado de trabalho passaram a ser 100% remotas. “Os cursos complementares, por sua vez, já eram online, e isso foi uma vantagem e apoio importante para que os estudos não parassem”, avalia Guimarães Filho.
O Gauss também tem entre suas premissas a ajuda psicológica aos pré-vestibulandos beneficiados. E aí está um ponto fortemente afetado pela pandemia. A procura pelo atendimento cresceu 250% desde março. Segundo o idealizador, porque “houve muita mudança na dinâmica familiar” e, ao mesmo tempo, “o agravamento de ansiedades dos estudantes”.
Além disso, Guimarães Filho elenca entre as dificuldades o fechamento de um dos cursinhos parceiros do projeto – o proprietário morreu em decorrência da covid-19. “Os estudantes foram transferidos para um outro, e estamos acompanhando a adaptação”, relata.
Mudança de rota
Apesar da pandemia, o estudante de Economia Vinícius de Andrade, fundador do projeto Salvaguarda, acabou conseguindo beneficiar mais gente do que o originalmente previsto. Em funcionamento há três anos e meio, o programa auxilia estudantes do ensino médio a ingressarem em universidades de qualidade. No ano passado, ele encerrou a contabilidade com 21 escolas parceiras – e um total de 10.297 alunos atendidos.
“Para mim, 2020 seria o ano mais incrível até agora. Estávamos planejando excursões para outras cidades, correções mensais de redação e diversas ferramentas presenciais e online”, conta Andrade à DW Brasil. O ano começou com 40 escolas parceiras.
Mas, em março, a pandemia obrigou um ajuste da rota. “Quando soubemos que as escolas parariam, confesso que imaginei que poderia ser algo por apenas duas semanas. Eu não queria parar. Estava orgulhoso do planejamento que havíamos feito para este ano”, recorda.
Diante da gravidade do cenário, o jeito foi focar as ferramentas online. Segundo ele, todo o modelo foi reformulado para que o auxílio aos alunos ocorresse de forma remota, das orientações feitas por tutores à correção de atividades. Antes, ele conta que pensava em um pacote completo – um misto de ferramentas online e acompanhamento presencial. A pandemia exigiu um mergulho mais profundo no meio digital.
O que poderia ser um problema acabou aumentando o número de participantes. Andrade passou a ser procurado por alunos de escolas que não eram parceiras do programa – ele chama de “alunos independentes” –, que também gostariam de participar. “Pensei: se o modelo está online, por que não? “, afirma. E foi então que o Salvaguarda ganhou cerca de 700 novos estudantes, de estados que vão de Santa Catarina ao Piauí.
“Mesmo quando tudo voltar ao normal, vamos manter o esquema atual, ou seja, trabalhar também com uma versão que siga prescindindo da presença física, em conjunto ao modelo tradicional com as escolas parceiras”, vislumbra.
Efeitos duradouros
De acordo com pesquisa apresentada à DW Brasil pela organização Todos Pela Educação, devido à pandemia, 25% dos alunos no Brasil estão há quatro meses sem contato nenhum com as escolas e os professores.
“São quase 10 milhões de crianças, que, em sua maioria, são as mais pobres. Isso é muito grave”, diz o diretor de políticas educacionais da organização, Olavo Nogueira Filho.
Ele defende que, além de iniciativas que ajudam os alunos, o poder público aja para mitigar os danos, ou seja, auxiliar principalmente os estudantes mais pobres para que tenham acesso ao ensino remoto.
“Os efeitos da suspensão de aulas serão duradouros, já que associados à fragilização do vínculo com a escola há outros impactos que afetam a saúde emocional dos estudantes e aumentam o risco de abandono e evasão escolar, em especial para os jovens”, aponta.
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