Por Miguel Azulino –
Uma lei municipal não pode contrariar a Constituição Federal. Acontece que corre na Câmara Legislativa de Santarém uma proposta de lei complementar para modificar o parcelamento, uso e ocupação de Alter do Chão, abrindo o vilarejo para a invasão de prédios, passando por cima dos moradores tradicionais, dos direitos constitucionais indígenas, da proteção da microbacia hidrográfica do Lago Verde, rasgando a convenção internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) das Nações Unidas e tentando anular a proteção já estabelecida pelo município em 2012 (PL 007/2012). A ideia de mudança na lei tenta se adiantar à finalização e publicação do novo Plano Diretor da cidade e fere não só a lei máxima do país e acordos internacionais, como também deixa escancarada a influência de setores privados no governo.
Em Alter-do-Chão não se sente dor
Tem um povo pobre, mas acolhedor
Por Deus foi criada a sua beleza
Suas praias lindas são da natureza
O seu lago verde é de admirar
A toda essa gente que vem visitar
Alter do Chão
(Recolhido por: Maestro Wilson Fonseca e Emir Bemergui)
A antiga vila amazônica de Alter do Chão conta, só no calendário oficial, mais de 356 anos, sem somar na idade sua ancestralidade e presença de povos nativos, com sítios arqueológicos na região datando 10 mil anos. Entre Santarém e Belterra encontra-se a maior concentração de sítios arqueológicos de terra preta de índio da Amazônia, patrimônio cultural imaterial protegidos pelo IPHAN. A vila está com processo de demarcação da Terra Indígena TI Borari que teve início em 2003 e se arrasta há 14 anos, com documentos engavetados sem publicação desde 2009, quando o relatório técnico com os limites territoriais da TI foi entregue à FUNAI. Dado que nenhuma terra indígena em estudo pode ser alvo de especulação (Constituição Federal art 231 e 232 – dos Índios), a proposta de mudança da lei já é ilegal mesmo antes de apresentada.
Além da demanda por demarcação indígena, a vila guarda características suficientes para ser tombada por sua história no período pós-cabraliano, como aconteceu em Paraty, no Rio de Janeiro há mais de meio século. Em Alter, famílias de pescadores tradicionais vivem em harmonia com as águas, a flora e fauna locais, guardando ainda rituais religiosos como o Çairé que são marcas das missões jesuíticas amazônicas que precisam ser preservadas.
Nas ruas de Alter qualquer morador ou turista encontra pés de caju, carambola, jambo, manga, murici, jutaí, cupuaçu, jenipapo, urucum e por aí vai. Além de árvores nativas à vista em qualquer caminhada, uma extensa fauna silvestre circula livremente pela vila, com aves amazônicas, macacos e bichos-preguiças podendo ser vistos diariamente.
As casas antigas contam histórias pelas paredes. Com a maioria das construções térreas avarandadas e cercadas de árvores, os moradores antigos normalmente sentam-se na frente de suas moradias para conversar e contar histórias. Todos se conhecem e de um modo particular se defendem.
A vila ainda têm uma grande Área de Proteção Permanente – APP, com a microbacia do Lago Verde e dezenas de igarapés, igapó e nascentes. Tanto o Código Florestal como a Lei das Águas estabelecem normais federais para a preservação dessas florestas e demais formas de vegetação nativa, bem como da biodiversidade, do solo, dos recursos hídricos e da integridade do sistema climático, para o bem estar das gerações presentes e futuras.
No âmbito de proteger ainda mais os povos tradicionais e cultura local, a população lutou para a criação de uma Área de Proteção Ambiental – APA. Em 2003, Alter virou uma unidade de conservação, seguindo as categorias do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Seu Plano de Uso, amplamente discutido pelos comunitários em 2012, limita a urbanização da vila e a preservação desse paraíso ecológico.
Em reuniões, um pequeno grupo de engenheiros e arquitetos forçam a mão para a liberação de prédios de 19m. Ignoram o fato que o debate é muito mais profundo que definir uma altura mínima de qualquer empreendimento. A proposta deles, além de ilegal, não é de desenvolvimento da área, que precisa sim de atenção pública em obras de saneamento básico. A proposta do setor imobiliário trata da descaracterização da vila histórica e indígena, da destruição da fauna e da flora, dos corredores ecológicos e dos mananciais. (Envolverde)